Hannah Arendt

por Alexsandro M. Medeiros

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publicado em set. 2016

atualizado em jun. 2024

 

Filósofa judia, aluna do filósofo alemão Martin Heidegger, se exilou nos Estados Unidos na época da segunda guerra fugindo da Alemanha. Nesse período Hanna escreve As origens do totalitarismo, onde analisa as características do regime nacional-socialista e stalinista.

 

            

A obra Origens do Totalitarismo, que tornou Arendt conhecida internacionalmente, foi publicada em 1951 (primeiro em inglês e só depois, em 1955, em alemão) e é tanto uma obra de História quanto de Filosofia, pois nela Arendt tanto analisa elementos históricos dos regimes totalitários quanto dedica-se a compreender este tipo de regime. Arendt não apenas descreve “as fontes históricas e sociológicas desse regime, mas aponta também para uma reflexão sobre a forma como atitudes e formas de comportamento levaram à sua consolidação e sobre o tipo de atitudes e comportamentos que o poderiam ter evitado” (Andrade, 1997, p. 8).

Esta obra “é um divisor de águas na história das interpretações do fenômeno totalitário” (Adverse, 2022, p. 389). Uma obra na qual o totalitarismo aparece não como um mero acidente na história da humanidade, mas como uma nova forma de governo: uma forma de governo em que o poder político é colocado a serviço da destruição de tudo aquilo que não é parte de sua ideologia. Uma forma de governo que, segundo Arendt, difere até mesmo de uma tirania ou ditadura, pois nem mesmos estas pretendiam modificar a natureza humana (eliminando tudo aquilo que não fizesse parte da raça ariana, como no caso do nazismo, por exemplo). “Em contraste com a tirania comum, que persegue apenas os oponentes ao regime, o totalitarismo procura eliminar tudo que está fora do movimento, independentemente de qualquer oposição que este manifeste” (Bertinato Júnior, et. al., 2020, p. 8).

Já na obra As esferas pública e privada Arendt pretende realizar uma genealogia da ação política sublinhando a oposição entre a esfera daquilo que é comum (koinon) aos cidadãos - a esfera pública da política - e aquilo que lhes é próprio (idion) ou do domínio da casa (oikos) - a esfera privada. As origens da ação remontam à polis grega, espaço de ação política, através da pluralidade de opiniões.

Na obra A Condição Humana, por sua vez, Arendt tematiza os três conceitos fundamentais que constituem a gênese da sua antropologia filosófica: trabalho, produção e ação. Quanto ao trabalho, ele é necessário à sobrevivência biológica e efetiva-se na atividade do animal laborans, o qual a partir de um estádio primitivo de existência vivia isolado dos outros seres humanos regendo-se apenas pelos ditames fisiológicos da vida animal. Em relação à produção, ela é o estádio do homo faber que produz objetos duráveis (técnicas) partilhando o seu saber de fabrico com outros homens. Já a ação é a característica matricial da vida humana em sociedade. Os homens agem e interagem uns com os outros no seio de uma vida política em sociedade. Só a ação é a única característica da essência humana que depende exclusivamente da contínua presença de outros homens. Arendt enquadra o trabalho (labor) e a produção no domínio da esfera privada, enquanto a ação está exclusivamente no plano da esfera pública (política). O privado é o reino da necessidade. O público é o reino da liberdade. A ação (política) nunca é equivalente a um trabalho necessário à sobrevivência biológica ou à produção técnica. A ação é uma atividade comunicacional mediada pela linguagem da pluralidade de opiniões no confronto político e efetivada através da retórica.

Também nessa obra Arendt procura demonstrar a inversão no mundo contemporâneo entre a esfera pública e privada. Diferente do mundo grego, onde a esfera pública tinha claramente uma importância maior, no mundo atual predomina a esfera privada e por isso, no pensamento de Arendt, não há espaço para a “ação”, pois esta acontece predominantemente no espaço da política (Sell, 2006).

 

Totalitarismos 

O século XX viu surgir em sua História, a despeito de toda luta pela democracia e pela liberdade e direitos individuais, várias formas de regimes totalitários que de diferentes maneiras procuraram submeter os indivíduos e a própria sociedade ao poder do Estado: são os Estados Totalitários, como o fascismo (na Itália, com Benito Mussolini), o nazismo (ou o nacional-socialismo na Alemanha, com Adolf Hitler) e o stalinismo (na Rússia, com Josef Stálin).

Mussolini chegou ao poder em 1922, quando foi nomeado primeiro-ministro e defendia a prioridade do Estado diante do indivíduo. “A palavra ‘fascismo’ vem do italiano ‘fascio’ e quer dizer um feixe amarrado por cordas. Esta imagem resume bem a ideologia do fascismo. Nesta visão, o Estado funciona como a amarra que mantém a unidade do feixe” (Sell, 2006, p. 127). Sobre o Fascismo, Noberto Bobbio escreveu uma obra intitulada Dal fascismo alla democrazia (Do fascismo à democracia), traduzida para o português, que aprofunda o debate em torno do regime fascista: sua origem, os acontecimentos que conduziram à gênese e à afirmação do fascismo, sua ideologia, a difusão da resistência contra o regime, sua queda e a instauração da democracia constitucional, além de alguns personagens ligados ao regime. “O modo pelo qual Bobbio reconstrói a natureza do regime e da ideologia fascista, isto é, do programa italiano da antidemocracia, oferece um parâmetro para a análise comparativa de muitos fenômenos análogos” (Bovero, prefácio à edição brasileira apud Bobbio, 2007).

Em 1932 Hitler chegou ao poder como líder do “Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães” e, como no fascismo, acreditava que o Estado precede o indivíduo e tinha também um componente racial, defendendo a ideia da superioridade da raça ariana diante de outras raças.

Antes do fascismo e do nazismo, a Rússia viveu no começo do século também um período marcado por revoluções, culminando em 1917 com a Revolução Russa que deu origem a União Soviética, mas foi só em 1924 que Stalin chegou ao poder e nele permaneceu até 1953, liderando um processo acelerado de industrialização, expropriação das propriedades camponesas utilizando-se do poder estatal.

Foi sobre estes dois últimos que Arendt concentrou boa parte de suas reflexões (nazismo e stalinismo). “Embora o livro também contenha referências ao estalinismo, Hannah Arendt concentra-se na análise do nacional-socialismo. Mais tarde, viria a iniciar um estudo sobre os elementos totalitários no marxismo, que não veio a terminar” (Andrade, 1997, p. 8). Cabe ressaltar ainda, a respeito do stalinismo, que a “falta de documentação acerca do regime stalinista foi parcialmente remediada após a morte de Stalin, dando ensejo a uma primeira revisão do texto original já em 1958” (Bertinato Júnior, et. al., 2020, p. 2).

Segundo a filósofa, o totalitarismo é um fenômeno político que busca a dominação total, a expansão mundial, tendo como instrumentos de ação a ideologia e o terror, ou seja, o uso de uma determinada forma de conhecimento e o uso da violência sem limite para a realização de seus fins políticos. Um componente essencial do totalitarismo é uso que faz da ideologia. “O totalitarismo utiliza, de acordo com Hannah Arendt, da ‘ideologia’ como instrumento essencial para explicar absolutamente e de maneira total o curso da história” (Vicente, 2012, p. 150).

A ideologia tem um papel fundamental. Ideologia enquanto visão de mundo, Weltanschauung, se transforma aqui em visão totalitária do mundo. Através da ideologia transforma-se uma ideia falsa em realidade. O tema da ideologia é aprofundado no texto de Arendt intitulado: Ideologia e Terror: Uma Nova Forma de Governo (publicado originalmente na Review of Politics, vol. 15, n. 3, p. 303-27, jul. 1953). Neste artigo Arendt analisa a crença nazista em leis raciais (a superioridade da raça ariana) e a crença bolchevista na luta de classes (que legitimava suas ações). Se, no nazismo, impera a ideologia de uma suposta lei natural biológica que define a superioridade da raça ariana e que determina a dominação de todos os povos por esta raça, no stalinismo temos a ideia de um classe proletária como portadora da verdade universal, única capaz de definir como deve ser a sociedade.

Dentro da ideologia que subjaz os governos totalitários estão o anti-semitismo (que corresponde a primeira parte do livro Origens do Totalitarismo), o racismo (justificativa biológica da dominação de povos), o imperialismo (que corresponde a segunda parte do livro Origens do Totalitarismo) e um nacionalismo exacerbado.

A pretensão de totalidade de um governo global é decorrência do expansionismo imperialista (Arendt analisa sobretudo o imperialismo colonial europeu até ao fim do domínio inglês sobre a Índia), cuja estrutura pretende submeter outros povos a leis com as quais não anuíram. “A expansão ilimitada do imperialismo consiste em uma expansão por ela mesma, no uso da força pela força, da violência pela violência” (Francisca, 2012, p. 3) e expansão dos instrumentos de dominação e violência de um Estado-nação sobre outro Estado-nação. Imperialismo entendido como uma política de expansão territorial de um país e a consequente colonização de outro, uma expansão onde nações inteiras são colonizadas e dominadas economicamente em busca de conquistas, riquezas e poder, dominação que é realizada através da força e da violência, onde terras imensas caem sob o domínio completo de uma nação sobre outra e os nativos são classificados como cidadãos inferiores (base do eurocentrismo e etnocentrismo da superioridade de uma ração sobre a outra). Analisando o fenômeno do Imperialismo, Hobsbawn (1988) ressalta como uma de suas características uma expansão de potências capitalistas sobre outras regiões periféricas do mundo, como estratégia para alcançar uma hegemonia mundial por meio da dominação econômica, política e cultural, além do claro propósito de garantir a captação do acúmulo de riquezas.

O nacionalismo exacerbado também contribuiu para a expansão dos regimes totalitários, à medida em que estimula um patriotismo que se crê superior aos demais povos e nações, começando pela língua e encontrando sua máxima expressão no culto da pureza que atribui, à raça ariana, a qualidade de ser superior às outras raças. Andrade (1997) destaca algumas características do movimento nacional-socialista como a burocracia, o terror, os campos de concentração (como “centros do terror absoluto”), a obsessão com a higiene verifica nos campos de extermínio, a revolução permanente e ainda:

1. A imagem do movimento estruturado como uma cebola (“Zwiebelstruktur”), “em que cada camada - as organizações, as associações profissionais, o facto de se ser membro do partido, a burocracia do partido, as formações de elite e os grupos da polícia – constitui uma fachada para a camada exterior, e outra para a camada interior, mais radical por se encontrar mais perto do centro” [...]. 2. A “apropriação” total da pessoa: o movimento apodera-se de cada um, de modo a já não ser possível a separação entre o espaço privado e o espaço público. 3. O isolamento das pessoas na sociedade: o isolamento leva à falta de sentido da realidade e à constituição de uma massa amorfa, que se deixa dirigir por um mundo fictício, embora coerente em si (Andrade, 1997, p. 10).

Arendt deu as diretrizes que caracterizam o totalitarismo há quase 70 anos, e o definiu como uma nova forma de governo que se diferencia de outras, como tiranias e ditaduras, principalmente pelo uso do terror e porque implica na perda de liberdade e espaço político. São os seguintes os elementos levantados por Arendt como características dos governos totalitários: a) Concentração de poder em um líder; b) Substituição do sistema partidário por um movimento de massas; c) Terror total como mecanismo de dominação; d) Abolição progressiva das liberdades e direitos da pessoa humana (como no caso dos campos de concentração nazistas); e) Deslocamento constante do centro do poder; f) Convivência do poder real e ostensivo; g) Uso da propaganda e do sistema educacional para doutrinar; h) Supervisão centralizada da economia; i) Manipulação da legalidade para atingir os seus objetivos.

Em sua análise dos regimes totalitários Arendt chama a atenção para o fenômeno dos campos de concentração. É com base na ideologia que um regime totalitário justifica as mortes nos campos de concentração como algo normal.

A revelação dos acontecimentos dramáticos ocorridos no interior dos campos foi um verdadeiro choque para Hannah Arendt e seus contemporâneos. As imagens que mostravam as condições precárias, sub-humanas, em que se encontravam os prisioneiros sobreviventes ou, ainda, as valas onde se amontoavam os cadáveres assassinados pela brutalidade dos SS, pelas doenças, pela fome, pela tortura, mudou por completo a compreensão dos acontecimentos históricos (Adverse, 2022, p. 390).

Os campos de concentração foram a forma encontrada pelos regimes totalitários de até modificar a “essência humana” para alcançar a ideia de uma raça pura.

Outro ponto de destaque é a propaganda. “A propaganda é recurso fundamental utilizado pelos movimentos totalitários para alcançarem àqueles ainda não convencidos e dominados, aqueles indivíduos mais resistentes, pouco inclinados a avalizar os métodos e propostas do regime” (Bertinato Júnior, et. al., 2020, p. 10). A propaganda era ainda a forma de divulgação da ideologia totalitária. Através da propaganda era possível construir um mundo fictício, apropriando-se dos sentimentos das pessoas para fortalecer a base ideológica do regime.

 

Disponível em: Estadão (Acesso em 12/09/2016)

Em 1967 Hannah Arendt se mudou de Chicago para Nova York onde permaneceu até a data de sua morte, em 4 de dezembro de 1975.

 

 

 

Referências Bibliográficas

ADVERSE, H. Hannah Arendt e As Origens do Totalitarismo. O surgimento de uma nova forma de governo. Sapere aude, Belo Horizonte, v. 13, n. 26, p. 389-400, jul./dez. 2022. Acesso em: 01 jun. 2024.

ANDRADE, I. M. de. Hannah Arendt e as Origens do Totalitarismo. Revista GEPOLIS, Lisboa, n. 4, p. 8-13, 1997. Acesso em: 03 jun. 2024.

BERTINATO JÚNIOR, O.; [et. al.]. O Totalitarismo em Hannah Arendt: elementos essenciais e uma reflexão à luz da contemporaneidade e da dinâmica das redes sociais. In: Curso de aperfeiçoamento em formação política do estado – 2020 [on line]. Escola Superior de Gestão e Contas Públicas TCMSP. Acesso em: 02 jun. 2024.

BOBBIO, N. Do Fascismo à Democracia: os regimes, as ideologias, os personagens e as culturas políticas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.

FRANCISCA, Maria. Imperialismo e totalitarismo em Hannah Arendt: ruptura, racismo, ideologia e terror na destruição da condição humana. Trabalho apresentado no VI Encontro Hannah Arendt – Pluralidade, Mundo e Política, na Universidade Federal de Pelotas/RS, em maio de 2012. Acesso em 13/09/2016

HOBSBAWM, Eric. J. A Era dos Impérios, 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

SELL, Carlos Eduardo. Introdução à Sociologia Política: política e sociedade na modernidade tardia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

VINCENTE, José J. N. Barbosa. Hannah Arendt: antissemitismo, imperialismo e totalitarismo. Ensaios Filosóficos, vol. VI, p. 144-155, out. 2012. Acesso em 14/09/2016.