Literatura e Política
por Alexsandro M. Medeiros
lattes.cnpq.br/6947356140810110
postado em 2015
atualizado em mar. 2017
Uma breve análise de diferentes obras, dos mais variados autores, de diferentes épocas revela algo aparentemente simples: os escritores refletem seu contexto social. Esta ideia simples é corroborada por Ezra Pound (1970, p. 71 apud MONTEIRO, 2016, p. 2) quando esta afirma que “os artistas são como antenas de suas épocas. Eles captam os acontecimentos de suas épocas e os refletem em suas obras”. E por mais que não haja uma intencionalidade do autor ou por mais involuntário que se pretenda ser ao escrever uma obra literária, Pereira, Lopes e Lima (2010) afirmam que uma obra sempre está impregnada por aspectos da realidade social na qual foi concebida. E mesmo que um certo conteúdo literário esteja distante no tempo e no espaço, em muitos casos ele reflete as experiências da realidade, tornando impossível separar um escritor do homem político e social, tornando clara a presença da política na literatura.
Na realidade uma obra literária pode ser estudada a partir de vários aspectos. Mas aqui vamos nos deter principalmente no aspecto social de uma obra literária.
Segundo Antônio Cândido (2014), podemos falar tanto de uma crítica literária quanto de uma sociologia da literatura e, de certo modo, é este segundo aspecto que mais nos interesse nesta seção, no sentido de uma sociologia da literatura que não propõe especificamente a questão do valor estético de uma obra mas interessa-se pela origem social dos seus autores, pela relação entre as obras e suas ideias, a influência da organização social, política e econômica. Podemos falar na realidade de uma relação dialética sociedade ↔ arte. "Vendo os problemas sob esta dupla perspectiva, percebe-se o movimento dialético que engloba a arte e a sociedade num vasto sistema solidário de influências recíprocas" (id., 2014, p. 34).
Para a crítica literária, procura-se mostrar como a importância de uma obra “deriva das operações formais postas em jogo, conferindo-lhe uma peculiaridade que a torna de fato independente de quaisquer condicionamentos, sobretudo social, considerado inoperante como elemento de compreensão” (id., 2014, p. 13). Para a sociologia literária procura-se mostrar o seu valor e significado a partir do ponto em que exprime certo aspecto da realidade e que tal aspecto constitui o que uma obra tem de essencial. Vemos assim como na verdade são dois pontos de vista que se integram e não podem ser dissociados sendo necessário fundir “texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra” (id., 2014, p. 13).
Quando fazemos uma análise deste tipo [literária], podemos dizer que levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente; mas como fator da própria construção artística estudado no nível explicativo e não ilustrativo (p. 16-17).
A análise literária assimila a dimensão social como fator estético, os aspectos da história sociologicamente orientada como fator de arte. No nível da análise da crítica literária, o ponto de referência não é tanto a estrutura histórica e social, quanto a estrutura estilística e estética.
Já uma sociologia da literatura toma por objeto de estudo o fato literário como fato social (ESCARPIT, 1958). Analisa a literatura como fenômeno social. E é naturalmente neste aspecto que podemos analisar como a Literatura ocupou-se da política em incontáveis momentos, não apenas jornalisticamente descrevendo e repercutindo os fatos políticos como criando ficções sensacionais, por vezes baseadas no cenário político que vivenciavam seus escritores, alguns com caráter de protesto ou resistência, como, por exemplo, todos os livros que têm como pano de fundo os golpes militares na América do Sul ao longo do século XX.
Embora o nosso objeto de estudo aqui não seja especificamente uma Sociologia da Literatura e sim procurar entender como a Literatura ocupou-se intensamente das relações políticas e sociais ao longo da história é inegável como um ponto de vista se aproxima do outro. Sobretudo se entedermos, sem esgotar as perspectivas que um estudo sociológico literário aborda, como este procura “relacionar o conjunto de uma literatura, um período, um gênero, com as condições sociais” (CÂNDIDO, 2014, p. 18) ou ainda como um estudo “que investiga a função política das obras e dos autores, em geral com intuito ideológico marcado” (id., ibidem, p. 20).
Segundo Antônio Cândido (2014), Taine no século XVIII e Sílvio Romero no caso brasileiro são alguns dos principais expoentes do estudo sociológico literário a partir da analise de suas condições.
A sua maior virtude consiste no esforço de discernir uma ordem geral, um arranjo, que facilita o entendimento das sequências históricas e traça o panorama das épocas. O seu defeito está na dificuldade de mostrar efetivamente, nesta escala, a ligação entre as condições sociais e as obras. Daí quase sempre, como resultado decepcionante, uma composição paralela, em que o estudioso enumera os fatores, analisa as condições políticas, econômicas, e em seguida fala das obras segundo as suas intuições ou os seus preconceitos herdados, incapaz de vincular as duas ordens de realidade (id., ibidem, p. 19).
Em todo caso, sempre que se desloca o interesse de uma obra tomando como elementos essências de sua matéria seus aspectos sociais, as circunstâncias do meio que influíram na sua elaboração ou sua função social, estamos em meio a uma análise sociológica e política da literatura. Tais aspectos são essências para o historiador, o político, o sociólogo, “mas podem ser secundários e mesmo inúteis para o crítico” (CÂNDIDO, 2014, p. 18), ou seja, para a análise crítica literária. O que não significa dizer que tais aspectos sejam excludentes, pois tanto os aspectos internos quanto os aspectos externos de uma obra são decisivos para a análise literária. Além disso, “pretender definir sem uns e outros [aspectos internos e externos] a integridade estética da obra é querer, como só o barão de Münchhausen conseguiu, arrancar-se de um atoleiro puxando para cima os próprios cabelos” (CÂNDIDO, 2014, p. 22).
Sob vários aspectos podemos pensar a literatura como um “instrumento” da política, um instrumento que utiliza os meios de comunicação para produzir resultados políticos e sociais. Muitos escritores tiveram suas obras censuradas por terem sido usadas como instrumento de denúncia política e em épocas de proibição da liberdade de expressão, o artifício literário pode ser usado para propagar certas mensagens e chamar os indivíduos à luta. Se, contudo, a literatura é uma forma plausível de representação do real, esta se distingue da política pelo seu discurso e pela forma de abordagem e compreensão da realidade social e histórica. Na literatura a realidade é criada ou recriada, inventada ou reinventada, imaginada, fantasiada, através de metáforas, alegorias, linguagem simbólica mas nem por isso a literatura, neste caso, deixa de contribuir para desvendar aspectos das relações sociais e de poder. Por meio da literatura somos levados a nos relacionar imaginariamente com a realidade histórica. Entretanto, enquanto a política ocupa-se do real, a “literatura política” ocupa-se com o possível.
Vejamos um pouco dessa relação entre Literatura, Sociedade e Política ao longo da História.
Literatura, Sociedade e Política
A relação entre a literatura, a sociedade e a política pode ser percebida desde a literatura clássica, nas epopeias e nas tragédias gregas. As mais conhecidas são a Ilíada e a Odisseia de Homero. Embora o aparente motivo da guerra de Troia narrada na Ilíada seja uma disputa amorosa entre o príncipe Paris e Menelau, sabemos que o rapto de Helena por Paris serviu apenas de pretexto aos distintos povos gregos para se unir em uma expedição e “recuperar” a mulher de Menelau quando, na verdade, a Ilíada nos traz o pano de fundo da guerra entre gregos e troianos. A questão da guerra, muito além do rapto e sedução de Helena por Paris, é uma tentativa de fortalecer o estado nacional grego. A Ilíada está carregada de ideias políticas, leis, códigos, tanto quanto de questões míticas e religiosas.
Por sua vez,
os episódios da Odisseia, cantados nas festas gregas, reforçavam a consciência dos valores sociais, sublinhavam a unidade fundamental do mundo helênico e a sua oposição ao universo de outras culturas [...] estabeleciam entre os ouvintes uma comunhão de sentimentos que fortalecia a sua solidariedade, preservavam e transmitiam crenças e fatos que compunham a tradição da cultura (CÂNDIDO, 2014, p. 55-56).
Na verdade podemos ir ainda mais longe no tempo ao analisar a configuração de uma obra do ponto de vista sociológico com seus valores sociais, ideologias e sistemas de comunicação que contribuem para o seu conteúdo desde as sociedades ditas primitivas.
É o caso do poema esquimó citado por Boas [1938], no qual as mulheres celebram a volta de uma caçada feliz [...] Aí está um caso em que determinada atividade se transforma em ocasião e matéria de poesia, pelo fato de representar para o grupo algo singularmente prezado, o que garante o seu impacto emocional (CÂNDIDO, 2014, p. 40-41).
No caso das sociedades primitivas e mais antigas e até mesmo as sociedades iletradas, onde uma “arte contextualizada” não cedeu espaço ainda para uma “arte individualizada”, a arte sempre desempenha uma função social importante. Função social que “comporta o papel que a obra desempenha no estabelecimento de relações sociais, na satisfação de necessidades espirituais e materiais, na manutenção ou mudança de uma certa ordem na sociedade” (CÂNDIDO, 2014, p. 55). A arte e, com ela, a literatura, nestes casos, se liga diretamente a vida coletiva. Suas manifestações são mais coletivas do que individuais ou pessoais. O “artista” expressa aspectos que interessam a todos.
E o que dizer da influência decisiva dos valores cristãos nas artes ao longo dos séculos, seja em pinturas, esculturas, música e literatura, como é o caso da Divina Comédia de Dante Alighieri? “Construída em torno de princípios teológicos, dividida em um número ritual de versos e cantos, desenvolvendo um sistema alusivo em torno dos valores intelectuais e afetivos da religião” (CÂNDIDO, 2014, p. 41).
Essa relação também está presente no Humanismo Renascentista com as utopias de Tomas More (2004), Tomaso Campanella, Francis Bacon e um dos poemas épicos do Renascimento, Os Lusíadas, de Luiz de Camões, é possível perceber também que a história literária caminha passo-a-passo com os grandes eventos. Na tradição luso-brasileira, Os Lusíadas faz transparecer a expansão europeia, não obstante haver incorporado em seu texto parte da mitologia grega. Com valores literários, fiéis às exigências retóricas do Neoclassicismo, pode servir igualmente de fonte da História, se submetido ao estudo das ruínas culturais e à coleta de tópicos não diretamente ligados ao relato causal-temporal.
Modernamente, na ficção e nos poemas engajados, as obras literárias abordam as mais variadas temáticas desde ordem moral, política, psicológica e inclusive social. No período da Modernidade, quando a sociedade urbana e industrial se torna mais e mais complexa, as obras literárias exprimem e retratam essa mudança.
Como a sociedade humana tem-se revelado desigualitária, violenta e excludente, a fim de estabilizar o grupo dominante, minoritário, dissociado do grupo dominado, majoritário, muitos escritores, sensíveis a essa injusta organização, não deixam de registrar, na criação literária, o espelhamento das turbulências que os atingem. Diagnosticam os males e pretendem, inclusive, apontar saídas.
Vemos assim como ao longo do tempo uma análise política e sociológica de uma obra literária aborda as possíveis influências exercidas pelo meio social sobre a obra de arte
Dizer que ela [a obra literária] exprime a sociedade constitui hoje verdadeiro truísmo; mas houve tempo em que foi novidade e representou algo historicamente considerável. No que toca mais particularmente à literatura, isto se esboçou no século XVIII, quando filósofos como Vico sentiram a sua correlação com as civilizações, Voltaire, com as instituições, Herder, com os povos. Talvez tenha sido Madame de Staël, na França, quem primeiro formulou e esboçou sistematicamente a verdade que a literatura é também um produto social, exprimindo condições de cada civilização em que ocorre (CÂNDIDO, 2014, p. 29).
Nenhuma escola literária mais recente esteve tão próxima, talvez, da questão política e social quanto o Realismo, onde é possível observar como uma de suas características mais marcantes uma linguagem próxima da realidade e denúncias das injustiças sociais. No Brasil encontramos essa expressão literária em autores como Machado de Assis e Aloísio Azevedo.
Um exemplo disto é o Romance Esaú e Jacó (1904) de Machado de Assis que fornece dados da dinâmica sócio-política do Brasil na transição do Império para a República. Um dos momentos excepcionais do romance é exatamente o momento da proclamação da República, no dia 15 de novembro de 1889, narrado no romance. E de acordo com Astrojildo Pereira (1991), este romance é onde os laços da ficção se entrelaçam frequentemente com acontecimentos e episódios políticos reais e que tem nos irmãos gêmeos Pedro e Paulo, a representação da monarquia e do regime republicano, encarnando, inclusive, um certo jogo dialético entre o velho e o novo – nas palavras de Astrojildo. Acontecimentos históricos e políticos são representados, ficcionalizados e tratados literariamente, artisticamente. Há também no romance um personagem típico da vida política brasileira do Império: Batista. Com uma postura clientelista e patrimonialista.
Entendemos, pois, pelo exposto que o romance machadiano em questão (Esaú e Jacó) não pode ser lido ou visto como mera interpretação ou alegorização da história brasileira na transição do Império para a República. O que, a nosso juízo, é plausível indicar é que ao ficcionalizar a política e as relações de poder, Machado de Assis [...] realiza uma reflexão artística profunda sobre a dinâmica histórica do país em fins do século XIX, evidenciando alguns traços que seriam permanentes e recorrentes na vida política nacional (SEGATTO, 2007, p. 91).
Outro exemplo onde é visível perceber a relação entre Literatura e Política é na obra de Graciliano Ramos, marcada por forte inserção nos contextos sociopolíticos e econômicos, pela solidariedade com os oprimidos e pelo compromisso com o ideal da emancipação humana. O marco desse processo foi a Revolução Russa de 1917. Embora ainda não fosse comunista (só se filiaria ao Partido Comunista Brasileiro em agosto de 1945), Ramos logo simpatizou com ideias libertárias, numa reação às imposturas e desigualdades da época. Seus romances e contos abordam a complexidade da vida social e, não raro, denunciam as tramas da baixa política, as ambições de poder e as marginalizações daí decorrentes. Porém, para o autor de “Vidas secas”, a literatura não pode ser reduzida à ideologia, pois a especificidade do trabalho criativo se sobrepõe às exigências políticas imediatas e aos fervores partidários. A raiz da equação era entrelaçar arte e política, sem que uma subjugasse a outra.
Considerando ainda o contexto da Revolução Russa e saindo um pouco do universo literário brasileiro, temos também a figura de Leon Tolstoi que, em Guerra e Paz, faz um relato do período que antecede a Revolução Russa.
Já na História Contemporânea da Literatura é possível observar dois eventos traumáticos que ainda hoje inspiram a reflexão e o poder criador de poetas e ficcionistas: a Segunda Grande Guerra, de escala planetária, e, no caso brasileiro, o golpe militar de 1964.
Considerando o contexto da guerra é válido mencionar que em 2009, o Nobel de Literatura foi entregue a Herta Müller, representante de uma minoria alemã discriminada e perseguida na Romênia, que fez das motivações políticas fonte de seu trabalho, como se vê em Tudo o que Tenho Levo Comigo (publicado pela Companhia das Letras com tradução de Carola Saavedra). Uma história baseada em relatos de sobreviventes de campos de trabalho forçados russos.
Contemporaneamente é preciso destacar que foi por intermédio do Existencialismo de Jean-Paul Sartre que se desenvolveu o princípio de que a narrativa é sempre comprometida. A necessidade de engajamento também fustigou outros intelectuais contemporâneos, como Érico Veríssimo e Jorge Amado, mas foi Sartre que deu maior amplitude a essa ideia de uma “Literatura Engajada”, comprometida com as questões sociais. E por sua importância iremos dedicar uma texto específico a este tema.
A produção literária de Jorge Amado sempre abordou questões sociais e políticas, inclusive com fortes tendências a ideais comunistas. Como um destes exemplos tem-se o romance Cacau (publicado em 1933), que apresenta de forma crítica a sociedade baiana da época, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacaus no interior da Bahia, abordando questões como a exploração do trabalho desumano e escravo, a desigualdade social, a luta de classes e a estrutura de uma sociedade oligárquica e fundamentada em relações de poder coronelistas (veja também em nosso website um texto sobre o Coronelismo na Literatura; acesse: Coronelismo e Relações de Poder na Literatura). Jorge Amado revela nesta obra um forte valor social e político, narrando a história do personagem José Cordeiro, que depois de perder tudo o que tinha viu-se obrigado a ir trabalhar nas fazendas de cacau em Ilhéus. Narrado em primeira pessoa, Cacau, traz o questionamento proletário da visão do trabalhador sobre seu único e maior problema: o explorador. Um romance que reflete um nítido engajamento ideológico (uma análise sobre os efeitos da relação entre ideologia e estética na construção das cenas da obra é feita por Pelinser, 2012) do autor na época, evidenciado desde a epígrafe: “Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário?” (AMADO, 2000).
Também de Jorge Amado é a conhecida obra Capitães da Areia (publicado em 1937), adaptado para o cinema em 2011. A obra retrata a vida de um grupo de menores abandonados, chamados de “Capitães da Areia”, ambientado na cidade de Salvador dos anos 1930, que praticam “malandragens” e “ladroagens” para poder sobreviver neste cenário de miséria e pobreza (AMADO, 2009). A obra destaca não apenas a orfandade familiar (as crianças abandonadas de Capitães de Areia), mas de todo o aparato político e social do Estado que os tratam como “delinquentes” e marginais (ROSSI, 2009) e como o abuso de poder e a “violência”, por parte do Estado, afastam as crianças de instituições que deveriam acolhê-las fazendo com que estas prefiram viver à margem da sociedade (FONSECA; ANDRADE, 2011). Esta obra de Jorge Amado também pode ser analisada seja a partir do que hoje chamaríamos de “políticas públicas de juventude” (ou melhor, da ausência delas), ou seja, de como os jovens abandonados pelos pais e pela sociedade veem na “marginalidade” o único caminho para a sobrevivência (PAULETTI; BATOSO, 2012); seja através da ideia da construção identitária dos meninos de rua (SENA, 2014); ou seja através dos estereótipos, representações sociais e estigmas que são criados sobre as condições de abandono por crianças e adolescentes (AGUIAR; PALMEIRA, 2011);
Além de Jorge Amado, autores como Clarice Lispector ou Lima Barreto, a primeira através da obra A hora da estrela (publicado em 1977) e o segundo através da obra Recordações do escrivão Isaias Caminha e Clara dos Anjos, também podem ser tomados como exemplos de escritores que mesclam a ficção com fatos característicos da realidade social. Quando vemos a história de um escritor que se relaciona com uma jovem nordestina pobre – A hora da estrela (LISPECTOR, 1993) –, que perdeu os pais, foi criada por uma tia e saiu do Alagoas para o Rio de Janeiro, que se apaixona por um metalúrgico que sonha em ser deputado e como ela não se enquadra em suas ambições ele não assume nenhum compromisso com a moça não vemos aí narrada um pouco da história de milhares de imigrantes nordestinos que fogem dos dramas vividos em sua terra natal em busca de uma vida melhor e mais próspera nas grandes metrópoles do sudeste?
E quando lemos Recordações do escrivão Isaias Caminha (publicado em 1917) não vemos aí um romance autobiográfico (FLORÊNCIO, 2010), onde se mesclam fatos entre a vida do autor e os personagens da obra com questões étnico raciais[1] e de subordinação “como alguém que sofrera visceralmente a dor da miséria, da doença, da solidão e do preconceito” (id. ibidem, p.127)? Isaias Caminha é um mulato que mora no interior do Rio de Janeiro que vai estudar na capital, mas que para isso precisa de uma carta de recomendação do coronel da cidade onde mora, que o indica procurar um deputado do seu conhecimento na capital e entregar a carta a ele. Seu sonho de estudar medicina é frustrado pois ele não tem a receptividade que esperava na capital, tendo apenas um breve encontro na casa do deputado. Ele só poderia ter alguma chance se fosse indicado por alguém e nem mesmo essa indicação o ajudou. Como não teve êxito consegue emprego em um jornal até que consegue ascender profissionalmente não por mérito pessoal, mas por descobrir fatos pessoas do editor do jornal e começar a chantageá-lo (BARRETO, 1995). Já o romance de Lima Barreto, Clara dos Anjos, leva o seu leitor a refletir simultaneamente sobre as relações de gênero, raça e classe social. A obra tem como cenário o subúrbio carioca e conta a estória de Clara, moça negra e pobre que se envolve com Cassi Jones, que é branco e acostumado a iludir as mulheres e fará o mesmo com a ingênua Clara. E apesar de ser alertada sobre o rapaz. Clara se deixa levar pela sedução de Cassi Jones. O auge do drama de Clara é quando ela engravida e Cassi Jones viaja para São Paulo, dizendo que seria por causa de uma oportunidade de emprego, mas que na verdade seu objetivo era abandonar Clara. Só então Clara cai em si e se vê grávida e sozinha, tendo que buscar alternativas para sobreviver e dar um futuro digno ao seu filho. Através do drama de Clara, Lima Barreto denuncia os problemas raciais, sociais e de gênero, expondo os preconceitos, submissão e abandono que as mulheres sofriam na época.
A questão da imigração aliada à questão econômica (SEREZA, 2014), a pobreza (BAHIA, 2012) e a questão étnico racial aparece no romance O Cortiço (publicado em 1890) de Aluísio Azevedo. De acordo com Haroldo Sereza “as personagens são apresentadas de acordo com o papel que cumprem na vida econômica” (id, ibidem, p. 185). É claramente possível traçar “um paralelo entre ficção e realidade, através da análise de O cortiço, e a comparação com o contexto histórico ao qual a obra se refere” (BAHIA, 2012, p. 248). O romance relata o destino de um imigrante português que chega ao Brasil, Jerônimo, e denuncia a exploração e as péssimas condições de vida dos moradores das estalagens ou dos cortiços cariocas do final do século XIX (AZEVEDO, 1997). Jerônimo é branco, forte, persistente, com gosto pelo trabalho e espírito de cálculo, cuja principal aspiração é “subir na vida” (ideologia eurocêntrica do branqueamento). Acontece que Jerônimo conhece no Brasil uma mulata, Rita Baiana e, ao se “aclimatar ao clima do Brasil”, Jerônimo torna-se dengoso, preguiçoso, amigo das extravagâncias, sem espírito de luta. No romance aparece também outro personagem, João Romão, outro português que participa das qualidades étnicas da raça branca.
(...) o desfecho do romance é parabólico. João Romão, calculista e ambicioso, ascende socialmente no momento em que se distancia da raça negra (ele se desvencilha de Bertoleza, com quem viveu grande parte de sua vida); Jerônimo, ao se abrasileirar, não consegue vencer a barreira de classe, e permanece “mulato”, junto à população mestiça do cortiço (ORTIZ, 2006, p. 39).
Algo semelhante acontece em O Guarani, um romance que tenta criar uma identidade nacional brasileira, idealizando o índio com o branco, mas deixando de lado o negro, que naquele tempo era identificado historicamente pela sua força de trabalho, “mas até então destituído de qualquer realidade de cidadania” (ORTIZ, 2006, p. 37).
Por fim cabe aqui uma reflexão: por que o envolvimento das artes literárias no jogo político? A resposta a esta pergunta pode ser a mais variada e não temos intenção de esgotá-la em algumas poucas palavras. Contudo podemos dizer que a Arte, bem entendida, serve de instrumento para a emancipação humana: sonhos e desejos ganham asas e podem ser saciados com a criação literária. O artista alimenta a obra com os elementos de sua experiência e, simultaneamente, exprime as aspirações da maioria. E o leitor/observador que captar essa mensagem e conduzi-la ao cerne de suas indagações, sentir-se-á fortalecido na busca de sua emancipação e auto-realização.
Aqui os mistérios da criação literária são questionados com perguntas fundamentais: por que escrevo? e como escrevo? E especulados sobre o relacionamento da literatura com o mundo, com a história, seu convívio social. Como a literatura se comporta? Como tem se comportado? Como deve se comportar no meio social que lhe dá existência efetiva? A literatura é um fruto social dos mais importantes e dos mais saborosos. Logo, não é descabido perguntar o que ela está fazendo aqui. Surgiu para quê? Tem alguma função social? Entre estas e tantas outras reflexões, a política e as questões sociais certamente encontram um lugar de destaque entre os escritores. Existe um público mais exigente que não aceita apenas a ideia de que o compromisso do escritor é apenas o de escrever bem e empolgar o público ao qual se dirige. A reflexão literária tem um papel social. O escritor deve engajar-se de algum modo. Comprometer-se com as questões sociais. Ademais,
[...] tanto quanto sabemos, as manifestações artísticas são inerentes à própria vida social, não havendo sociedade que não as manifeste como elemento necessário à sua sobrevivência [...] São, portanto, socialmente necessárias, traduzindo impulsos e necessidades de expressão, de comunicação e de integração que não é possível reduzir a impulsos marginais de natureza biológica [...] a produção da arte e da literatura se processa por meio de representações estilizadas, de uma certa visão das coisas, coletiva na origem, que traz em si um elemento de gratuidade como parte essencial da sua natureza (CÂNDIDO, 2014, p. 79-80).
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[1] Uma análise da obra de Lima Barreto sobre a questão do preconceito racial no Brasil, traçando um paralelo com a obra A maldição de Canaan de Romeu Crusoé, expressando a indignação de personagens que relatam as diversas formas de discriminação que sofreram a despeito de um país que proclamava livre do preconceito racial (o famoso mito da democracia racial) é feita por Tacyana Moretti (2009).
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Literatura e Política
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3. Filosofia Existencialista e Literatura Engajada: Entre Sartre e Simone de Beauvoir (artigo)
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