Sócrates

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em jul. 2018

atualizado em dez. 2018

            Sócrates nasceu em 470 ou 469 a.C., natural de Alopace, povoado da circunvizinhança de Atenas. A interpretação do seu pensamento tem grandes dificuldades já que ele nada escreveu, valorizando sobretudo o ensinamento oral. Conhecemos seu pensamento principalmente através de seu discípulo, Platão (com ênfase nos escritos de juventude de Platão, também conhecidos como diálogos socráticos).

Os diálogos da primeira fase de Platão constituem a nossa principal fonte de estudo da filosofia de Sócrates. Estes diálogos, fase socrática de Platão, buscam registrar o pensamento de Sócrates, fundamentalmente buscam refletir o modo socrático de fazer filosofia a discussão de temas e problemas nas praças de Atenas com seus discípulos, adversários, políticos, sofistas e concidadãos (SOFISTE, 2007, p. 36).

            Conhecemos um pouco sobre a figura de Sócrates também através de Xenofonte (sua obra os Memoráveis e o Banquete), além da obra As Nuvens de Aristófanes (representada no ano de 423, quando Sócrates ainda era vivo) e os escritos de Aristóteles que fazem menção ao Φιλοσοφος (filósofo).

            Em relação ao Sócrates de cada um destes pensadores, Donini e Ferrari (2012, p. 75-76) ressaltam que elas apresentam um olhar legítimo e possível sobre a figura de Sócrates:

emergem quadros decididamente diferentes: para Aristófanes, Sócrates foi um sofista, aliás o protótipo do sofista do século V; para  Platão , ele foi o antisofista por excelência, isto é, o filósofo que dedicou toda a sua vida a mostrar a di­ferença (moral e intelectual) entre filosofia e sofística; para Xenofonte, Sócrates foi uma espécie de represen­tante do bom senso e encarnou, de certa forma, a respeitabilidade (e a moral) do cidadão ateniense do seu tempo; por fim, para Aristóteles, ele foi um filósofo da ética ao qual se atribuem alguns teoremas bem defi­nidos relativos sobretudo à relação entre virtude e co­nhecimento.

Disponível em: Slideshare, slide 22 Acesso em 22/07/2018

            Quem valorizou a descoberta do homem feita pelos sofistas, orientando-a para os valores universais e morais, segundo a via real do pensamento grego, foi Sócrates. Sócrates dedicou-se à uma vida de reflexões e ao ensino filosófico, sem recompensa alguma, não obstante sua pobreza e manteve uma ligação muito estreita com a cidade de Atenas, desempenhando alguns cargos militares e civis e procurando sempre ser um modelo de bom cidadão. Sócrates atuou como hoplita (soldado da infantaria pesada) na Guerra do Peloponeso, combateu na Potidéia, onde salvou a vida de Alcebíades e em Delium, onde carregou aos ombros a Xenofonte, gravemente ferido. Formou a sua instrução sobretudo através da reflexão pessoal, na moldura da alta cultura ateniense da época, em contato com o que de mais ilustre houve na cidade de Péricles, agindo pela fala e por ela influenciando seus concidadãos: “e se um indivíduo se define como político na medida em que age e influencia os demais por meio da palavra viva, em ato (isto é, a fala), Sócrates foi sem dúvida o mais público, o mais político, o mais cidadão de todos os filósofos” (GOTO, 2010, p. 113-114 – grifo do autor). Sócrates era um Φιλοσοφος (filósofo) de ação, em ação, um cidadão que conversa e discute com seus concidadãos, representando o livre pensar e a liberdade de expressão em uma sociedade marcada por ideais democráticos: na ágora (praça pública) da polis (cidade-Estado) ateniense. Um falar que não é apenas “discursar e apresentar argumentos para vencer um debate na assembleia e persuadir ouvintes, mas, justamente, agir – no pleno significado do agir político (e democrático) de denunciar o arbítrio e a violência e criticar seus autores” (GOTO, 2010, p. 114). É assim que Sócrates exerce sua cidadania, procurando despertar publicamente seus concidadãos para a vida justa.

            A retórica socrática vai na contramão daquela defendida pelos sofistas, que está a serviço de qualquer ideia, tanto a democrática quanto a oligárquica: o que importa é vencer o debate. A retórica sofística se propõe a defender com o mesmo brilho qualquer tipo de argumento, tendo como critério não o da verdade do argumento, mas o da eficácia no debate. A retórica socrática, por sua vez, visa ao conhecimento (episteme) e à prática da virtude (areté), além de um ideal de justiça preconizado pelo Φιλοσοφος. Essa foi a tarefa que Sócrates tomou para si e que, segundo ele, tinha até um caráter divino: “o trabalho de Sócrates na polis, que consiste em interpelar a seus concidadãos e não abandoná-los à sorte no que diz respeito às questões sobre virtude, o saber e a vida boa, obedece a um comando divino” (GÓMEZ PÉREZ, 2017, p. 181 – tradução nossa). Embora Crítias e Cáricles, que exerciam a função de nomotetas (revisores de leis), tenham proibido Sócrates de ensinar oratória, conforme atesta Xenofonte (Memoráveis, I, II, 31-33 apud GOTO, 2010, p. 114), o Φιλοσοφος está convencido de que o bem maior para o ser humano consiste em fazer discursos sobre a verdade, sobre a virtude e outros temas tão necessários a uma boa vida. A vida na polis exige isto de seus cidadãos, ou seja, não se pode ser cidadão e permanecer em silêncio. Renunciar a comunicação significa atentar contra os fundamentos da polis e da democracia. “Em outras palavras, se a polis é o espaço do comum, então ela exige comunicabilidade” (GÓMEZ PÉREZ, 2017, p. 184 – tradução nossa).

            Podemos tomar como exemplo da retórica socrática o início da obra Apologia de Sócrates, quando Sócrates exorta os seus ouvintes e fala que irá apenas dizer a verdade pois, se o mérito de um juiz consiste em ser justo, o de um orador consiste em dizer a verdade. Não a verdade dos oradores eloquentes, com discursos aprimorados e um estilo de grande persuasão, mas apenas a verdade. Uma retórica que podia eventualmente ser confundida com a dos sofistas, vista a serviço de qualquer ideia, visto que no diálogo socrático não vemos estritamente a defesa de um argumento (com introdução, desenvolvimento e conclusão) e Sócrates discursa de forma improvisada, fragmentada, através de perguntas e respostas, por pausas e reticências, sem começos ou fins determinados e estabelecidos. Todavia, os sofistas defendiam na retórica o critério da eficácia e não da verdade do argumento.

 

O homem é a sua alma

            O pensamento de Sócrates é bem característico de uma Φιλοσοφία (filosofia) espiritualista, no sentido de alguém que se preocupa não tanto com as coisas materiais, mas cujo olhar se dirige, essencialmente, para o seu lado espiritual, para a sua alma[1]. Para Sócrates (1987, p. 10) a essência do homem é a sua psyché, a sua alma.

Não tenho outra ocupação – diz Sócrates em sua Apologia – senão a de vos persuadir a todos, tanto velhos como novos, de que cuideis menos de vossos corpos e de vossos bens do que da perfeição de vossas almas, e a vos dizer que a virtude não provém da riqueza, mas sim que é a virtude que traz a riqueza ou qualquer outra coisa útil aos homens, quer na vida pública, quer na vida privada.

            Assim, Sócrates, através do cuidado da própria alma, objetivava levar os homens a buscar o verdadeiro bem. Para Sócrates a alma (psyché) é o principal objeto de preocupação e de cuidado, pois sendo a alma sede da consciência e aquilo com o qual podemos determinar nosso caráter, é ela que manifesta nossa realidade interior, podendo ser sábia ou ignorante, justa ou injusta, boa ou má. Essa visão torna compreensível a tese de Sócrates de que virtude é conhecimento – como veremos logo adiante – pois Bom, é o homem autoconstruído a partir de sua interioridade e que age de acordo com as exigências de sua alma-consciência.

A filosofia socrática parte da necessidade de o indivíduo cuidar de sua alma, daí a alusão à inscrição encontrada no templo em Delfos, o famoso conhece-te a ti mesmo [em grego: γνῶθι σεαυτόν (gnōthi seauton); em latim: nosce te ipsum], que significa que devemos cuidar de nossa alma, cultivá-la, o que é indubitavelmente mais importante do que bens materiais ou preocupações com a honra ou coisas semelhantes, pois é através de um processo de melhoria da alma, do conhecimento, que poderemos atingir a virtude (Apologia 29d-30c), e a sabedoria (Cármides 164d-e), que são as condições de possibilidade de todos os outros bens (HOBUSS, 2014, p. 84-85).

            Conhece-te a ti mesmo – γνῶθι σεαυτόν (gnōthi seauton) – é o lema em que Sócrates cifra toda a sua vida de sábio. O perfeito conhecimento do homem é o objetivo de todas as suas especulações e a moral, o centro para o qual convergem todas as partes da Φιλοσοφία (veja mais em: A Ética Socrática). A psicologia serve-lhe de preâmbulo, a teodicéia de estímulo à virtude e de natural complemento da ética. Sócrates tomou como missão para si a de ajudar os homens a se voltarem para o conhecimento de si mesmos, de se voltarem para o seu próprio interior, sua própria subjetividade, objetivando a conquista da própria alma.

            Sócrates traçou, em linhas gerais, o itinerário que depois seria percorrido por Platão e por Aristóteles de forma mais abrangente e sistemática. Estes dois filósofos, partindo dos pressupostos socráticos, desenvolveram uma obra monumental, que trata dos mais variados temas, inclusive da moral.

            No campo da moral, Sócrates reconhece também, acima das leis mutáveis e escritas, a existência de uma lei natural e universal – independente do arbítrio humano –, expressão da vontade divina promulgada pela voz interna da consciência, diferentemente do convencionalismo dos Sofistas.

            Vamos agora dizer algumas palavras sobre como Sócrates pretendia fazer com que seus interlocutores, depois de reconhecer sua própria ignorância, poderiam chegar ao conhecimento verdadeiro ou ao conhecimento de si mesmos.

 

O método: diálogo e maiêutica

            O procedimento filosófico de Sócrates fundamentava-se no diálogo, através do qual ele procurava levar o seu interlocutor a chegar à verdade, por meio de sucessivas perguntas: “dialogar com Sócrates levava a um ‘exame da alma’ e a uma prestação de contas da própria vida, ou seja, a um ‘exame moral’” (REALE; ANTISERI, 2007, p. 100). O Φιλοσοφος é um mestre de fazer perguntas: “Seu papel é o de interrogar sem trégua, encaminhar-se de pergunta em pergunta mais além das respostas” (PIZARRO, 2012, p. 37 – tradução nossa).

            A ação do Φιλοσοφος consiste em ajudar o outro a descobrir por si mesmo a verdade que Sócrates acreditava ser inata, ou seja, que todo homem já possuía dentro de si, em forma latente. A esse processo de partejar ideias deu-se o nome de maiêutica: uma espécie de arte obstétrica espiritual “em aguda alusão à sua mãe parteira, manifestando assim, sua clara intenção de fazer que os demais dessem à luz em suas mentes ideias verdadeiras com vistas a ações justas” (REYES, 2008, p. 4 – tradução nossa). Por isso Sócrates é “considerado o pai da maiêutica, ciência fundada por ele, à qual tinha como objetivo principal interpelar seus interlocutores sobre aquilo que cada um supunha saber” (FREIRE, 2016, p. 62).

            No livro Teeteto, Platão expõe como Sócrates entendia a maiêutica (para outras referências sobre a maiêutica, ver: Primeiro Alcibíades 110d – Ménon 81d a 85b – Fédon parte final –Teeteto 210bc) e que mais uma vez nos remete ao caráter introspectivo de seu pensamento, a ideia de que o conhecimento verdadeiro está dentro de nós mesmos e, por isso, só pode ser alcançado através de um profundo mergulho de nossa alma, dentro de si mesma. No parágrafo 150 Sócrates revela que seu método é uma arte de partejar ideias. “A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a diferença de que não partejar mulher, mas homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu trabalho de parto... neles mesmos é que descobrem as coisas belas que põem no mundo (Teeteto, 150b)”.

Sócrates caracterizou o seu método como maiêutica, que significa literalmente a arte de fazer o parto, uma analogia com o ofício de sua mãe que era parteira. Ele também se considerava um parteiro, mas de ideias. O papel do filósofo, portanto, não é transmitir um saber pronto e acabado, mas fazer com que o outro indivíduo, seu interlocutor, através da dialética, da discussão no diálogo, dê a luz a suas próprias ideias... A partir daí, o indivíduo tem o caminho aberto para encontrar o verdadeiro conhecimento (episteme), afastando-se do domínio da opinião (doxa) (MARCONDES, 2002, p. 48).

            A maiêutica é o momento final do método dialógico socrático, que se inicia primeiro com a ironia, em seguida temos a refutação (elenchos), para só então chegar ao parto das ideias.

            “O primeiro momento, (i) a ironia, resulta de uma dissimulação da parte de Sócrates, que ‘reconheceria’ seu não saber, ‘o sei que nada sei’ (Apologia 21d, República 354c), onde ele se traveste de alguém que ignora o que está sendo sustentado pelo interlocutor” (HOBUSS, 2014, p. 90). É uma espécie de estratégia utilizada por Sócrates, o primeiro passo visando conduzir  seu interlocutor ao reconhecimento do seu não saber, o que ocorrerá após a refutação dos argumentos.

            É comum vermos Sócrates, nos diálogos de Platão, em seus encontros com os Sofistas como Hípias, Protágoras, Górgias, Cálicles, Trasímaco, empenhando-se em demonstrar que o conhecimento de seus interlocutores é aparente e inconsistente e é nesse ponto que encontramos a aplicação dos princípios do método socrático: “a admissão (de certo modo “irónica”) da própria ignorância, que induz os parceiros a fornecer soluções para as questões que se vão enfrentando, e a célebre refutação (elenchos), quer dizer, a tática que visa a demonstração da inconsistên­cia destas respostas” (DONINI; FERRARI, 2012, p. 79). Sobre os chamados diálogos elênticos (JAEGER, 1995, p. 597) afirma que “Não é só em um diálogo, mas normalmente em todos estes diálogos curtos, que falta a conclusão esperada”. Se não se chega a nenhum resultado conclusivo nas conversas é porque pretende “pôs-nos nas mãos um enigma, deixando a nós resolvê-lo, pois entende que a solução se encontra de um modo ou de outro ao nosso alcance” (JAEGER, 1995, p. 597-598).

            Temos como exemplo o diálogo Górgias cujo tema central é a retórica (JAEGER, 1974). Nele encontramos refutações feitas aos argumentos de Górgias e Cálicles sobre a vergonha e a verdade moral, além de opor à concepção falsa ou sofística de política como simulacro do bem, injusta e desordenada, a concepção de política verdadeira ou filosófica. Mendoza (2008, p. 83 – tradução nossa) destaca deste diálogo as ideias que podem ser analisadas a partir do elenchos:

“‘se deveria evitar cometer uma injustiça mais do que sofrê-la’, ‘o homem deve procurar o bem, público e privado, e não apenas aparentar sê-lo’, ‘se deveria usar a retórica apenas para fins justos, tanto quanto procurar que assim seja a própria conduta, ‘devemos evitar a adulação própria e dos demais’”.

 

            A refutação é o momento em que há a desconstrução, “a par destruens do método” (REALE; ANTISERI, 2007, p. 102), das teses sustentadas pelo interlocutor, apontando seus paradoxos e contradições, passando a reconhecer os limites de seus argumentos. Sobre a refutação assim se expressa Vlastos (1983, p. 39 apud MENDOZA, 2008, p. 85 – tradução nossa):

1) O interlocutor afirma uma tese “p”, a qual Sócrates considera falsa e aponta a sua refutação.

2) Sócrates busca um acordo para posteriores premissas, diz “q” e “r” – proposições. O acordo é ad hoc: Sócrates argumenta desde “q” e “r” contra “p”.

3) Então Sócrates argumenta, e o interlocutor aceita, que “q” e “r” implica “não-p”.

4) Por conseguinte, Sócrates assinala que “não-p” há sido provado como verdadeiro, quer dizer, que “p” é falso.

            Sócrates forçava a uma definição do tema objeto de investigação que será considerada como falsa após serem reveladas suas contradições. Sócrates exortava o interlocutor a uma nova definição que seria criticada e refutada com o mesmo procedimento, até o momento em que o interlocutor reconhecia sua ignorância.

            Finalmente a maiêutica, o momento em que “Sócrates se apresenta como um parteiro da verdade que se encontra na alma (ver Teeteto 148e – 151d)” (HOBUSS, 2014, p. 91). É a parte construtiva do diálogo: “Sócrates punha em ação a pars construens do seu ensinamento e, sempre mediante perguntas e respostas, conseguia fazer nascer a verdade na alma do dialogante, quando esta dela estava grávida” (REALE; ANTISERI, 2007, p. 92).

            Na Atenas de 2500 anos atrás, Sócrates saia pelas praças, pelo mercado, nas reuniões com seus discípulos e conhecidos, a sondar a alma humana, interrogando, questionando sobre suas crenças e convicções, sobre a justiça. Sócrates “lhes perguntava, tranquilo: tò tí? – o que é isso? [...] O que entendem por honra, virtude, moralidade, patriotismo?  O que entendem por você mesmo? Era com tais questões morais e psicológicas que Sócrates adorava lidar” (DURANT, 1996, p. 28).

            O diálogo socrático também tinha como objetivo não apenas alcançar o perfeito conhecimento de si mesmo, mas também alcançar o perfeito conhecimento das coisas, principalmente aquilo que diz respeito às virtudes. Sócrates, por meio do diálogo, procura mostrar nossa ignorância em relação aquilo que acreditávamos ter como certo e reconstrói o saber, na procura da definição do conceito:

A concepção filosófica de Sócrates pode ser caracterizada como um método de análise conceitual. Isso pode ser ilustrado pela célebre questão socrática ‘o que é...?’... através do qual se busca a definição de uma determinada coisa, geralmente uma virtude ou qualidade moral”. (MARCONDES, 2002, p. 46).

            Afinal, que definição podemos dar de coragem, justiça, dever, liberdade?

            É importante notar que para Sócrates, uma melhor compreensão das coisas (e da vida) só pode ser resultado de um processo de reflexão do próprio indivíduo, que descobrirá, a partir de sua experiência, o sentido daquilo que se busca. Trata-se de um exercício intelectual em que a razão humana deve descobrir por si mesma aquilo que busca. Através do diálogo Sócrates objetivava fazer com que seus interlocutores justificassem seus conhecimentos sobre as virtudes ou as habilidades segundo as quais uma coisa era julgada como tal. Frequentemente, nestes diálogos, acontecia de Sócrates tornar patente a fragilidade das opiniões de seus interlocutores, a inconsistência de seus argumentos, a obscuridade de seus conceitos. Evidenciava-se a ignorância. Aquilo que as pessoas tomavam como certo e aceito, Sócrates as fazia reconhecer que na realidade nada sabiam.

            Para aqueles que sabiam reconhecer sua própria ignorância, isto poderia representar uma oportunidade de verdadeiro renascimento: o renascer de si mesmo, na própria consciência, de que por mais que saibamos ou acreditemos saber de uma coisa, é praticamente nada, diante daquilo que nada sabemos.

            Para outros, porém, isto poderia representar uma humilhação o que fez de Sócrates popular entre uns, e odiado por outros, como ressalta Diógenes Laércio, em sua Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (1977, livro I, cap. 5, 21 apud GOTO, 2010, p. 115):

Frequentemente sua conversa nessas indagações tendia para a veemência, e então seus interlocutores golpeavam-no com os punhos ou lhe arrancavam os cabelos; na maior parte dos casos Sócrates era desprezado e ridicularizado, mas tolerava todos esses abusos pacientemente. Incidentes desse tipo chegaram a tal ponto que certa vez, suportando com a calma habitual os pontapés que recebera de alguém, a uma pessoa que manifestou admiração por sua atitude o filósofo respondeu: “Se eu recebesse coices de um asno, levá-lo-ia por acaso aos tribunais?”

 

A sabedoria de Sócrates: só sei que nada sei

            Na obra Apologia de Sócrates, de Platão, vemos Sócrates reconhecer que o ponto de partida de sua reflexão filosófica foi a assertiva do oráculo de Delfos de que ele, Sócrates, era o homem mais sábio da Grécia. Apesar desta assertiva, Sócrates “se professava ignorante, ou seja, sem um saber definitivo e objetivo” (DONINI; FERRARI, 2012, p. 78) e, por isso, "tentou logo veri­ficar (e eventualmente desmentir) a sentença divina” (id., ibidem, p. 78). Foi então que Sócrates procurou por homens que pudessem desmentir a assertiva do oráculo. Procurou por políticos, poetas e especialistas nas artes manuais, ou seja, homens que pudessem ser mais sábios que ele, mas logo se apercebeu que eles se reputavam sapientes sem na verdade o sê-lo. Cada um deles poderia com razão advogar para si conhecer algo de seus ofícios, mas quando se tratava de conhecimentos além daqueles de seus ofícios, como por exemplo saber o que é belo e o bom, logo se revelava que não pareciam tão sábios. Mas então porque ele, Sócrates, seria o mais sábio de todos? Porque, ao contrário deles, Sócrates não advogava para si o status de homem sábio. Sua sabedoria consistia exatamente nisto, reconhecer a sua própria ignorância, ao passo que os outros acreditavam saber o que na realidade nada sabiam: “a sua sabedoria consiste essencialmente em reconhecer a sua ignorân­cia, ou seja, consiste no célebre ‘só sei que nada sei’ [em grego: ἕν οἶδα ὅτι οὐδὲν οἶδα], pensado como ponto de partida de qualquer pesquisa que queira apresentar-se autenticamente como filosó­fica” (DONINI; FERRARI, 2012, p. 78). “Os Sofistas mais famosos relacionavam-se com os ouvintes na soberba atitude de quem sabe tudo. Sócrates, ao contrário, colocava-se diante dos interlocutores na atitude de quem não sabe e de quem tem tudo a aprender” (REALE; ANTISERI, 2007, p. 101).

            É preciso considerar que o não saber socrático deve ser avaliado mais exatamente comparando o saber humano com o saber divino. Ora, sendo Deus onisciente, o saber humano, por mais que seja elevado, em nada se compara a onisciência divina, sendo portanto um saber limitado:

o próprio Sócrates explicita esse conceito: “Unicamente Deus é sábio. E é isso o que ele quer significar em seu oráculo [de Delfos]: a sabedoria do homem pouco ou nada vale. Considerando Sócrates como sábio, não quer se referir, creio eu, propriamente a mim, Sócrates, mas somente usar o meu nome como um exemplo. É quase como se houvesse querido dizer: ‘Homens, é sapientíssimo dentre vós aquele que, como Sócrates, tiver reconhecido que, na verdade, sua sabedoria não tem valor’” (REALE; ANTISERI, 2007, p. 101).

            Saber que nada se sabe pode parecer algo simplório, todavia, requer humildade e uma capacidade intelectual com discernimento. Paradoxalmente há um sentido de saber na assertiva de Sócrates:

por reconhecer-se leigo, também conduz como marca maior de seu perfil, a força intelectual de um homem que disse “só sei” para enfatizar seu poder de saber, e concluiu ao fim de sua pesquisa, com “nada sei”, o que pode apontar outra prerrogativa discursiva para ressaltar, mais uma vez, sua exímia capacidade de saber. “Só sei” e “nada sei” são duas frases numa mesma frase, duas faces do mesmo homem que disse duas coisas conclusivas que para serem ditas exigiam e ainda exigem muito saber ou muita ironia sobre o que se pensa saber que se sabe (FREIRE, 2016, p. 181).

            Sócrates tinha a convicção de que nada sabia mas, ao mesmo tempo, sabia demais sobre o seu nada saber. Esse é o caráter ambivalente do seu conhecimento. E é na certeza do seu não saber que estava fundamentada a maiêutica, como o método “que tinha como meta principal fazer o parto das ideias a partir de perguntas após perguntas que davam fundamento ao método dialético de Sócrates” (FREIRE, 2016, p. 181).

 

A morte de um sábio

            A história da morte de Sócrates e de sua acusação nos foi transmitida de forma magistral através da obra de Platão (1997): Apologia de Sócrates. “Somos privilegiados por podermos ler aquela simples e corajosa (senão legendária), ‘apologia’, ou defesa, na qual o primeiro mártir da filosofia proclamou os direitos e a necessidade de livre pensamento [...]” (DURANT, 1996, p. 30). Além da Apologia, outras duas obras onde Platão fala sobre o julgamento e a condenação de Sócrates são: o Críton, que trata do dever e onde alguns amigos de Sócrates tentam persuadi-lo, sem sucesso, a fugir da prisão; e o Fédon, que narra algumas conversas de Sócrates até o momento de beber a cicuta.

            Sócrates morreu em 399 a.C., acusado e condenado de impiedade, ateísmo (não crer nos deuses dos atenienses) e corromper a juventude: “mas, por trás de tais acusações, escondiam-se ressentimentos de vários tipos e manobras políticas” (REALE; ANTISERI, 2007, p. 93).

A Morte de Sócrates (In: ALMEIDA, 2016, p. 282) (fr: La Mort de Socrate) é uma pintura de 1787 do pintor francês Jacques-Louis David.

A pintura representa a cena da morte de Sócrates, acompanhado de Platão (sentado melancolicamente na beira da cama) e Críton (segurando o joelho de Sócrates). Um outro discípulo, de vestes vermelhas, segura a taça de veneno Cicuta que Sócrates deve beber. A mão de Sócrates aponta para o céu, indicando a sua reverência aos deuses e atitude corajosa pela sua morte.

            Ânito, Meleto e Lícon são os acusadores do processo que irá condenar Sócrates. E apesar de não constar nas acusações motivações políticas, a verdade é que Sócrates incomodava seus acusadores porque sua fala em praça pública embaraçava, incomodava e até mesmo destruía reputações de sabedoria. “As acusações de impiedade, de criação de novas divindades e de corrupção dos jovens são, no fundo, apenas cortina de fumaça: Meleto, Ânito e Lícon se mancomunam para atacar Sócrates porque tomam as dores daqueles que ele submetera ao seu interrogatório inquiridor” (GOTO, 2010, p. 118).

            Mesmo sendo um exímio orador, Sócrates não conseguiu se livrar do processo acusatório e posterior condenação. “No Banquete, Alcibíades nos dá um vivo testemunho de seu encontro com Sócrates. Suas palavras – diz – se assemelham à música de Marsias e quem as ouve fica assombrado e cai em êxtase e seu coração palpita e derrama lágrimas” (PIZARRO, 2012, p. 40 – tradução nossa).

            Condenado à morte através da Cicuta (veneno que ele deveria beber), seus discípulos e amigos mais próximos até chegaram a subornar os guardas da prisão oferecendo à Sócrates a possibilidade de fuga, mas ele recusou. Sobre a serenidade de Sócrates diante da morte iminente, e a despeito da aflição de seus discípulos pelo seu fim próximo, assim se refere Xenofonte (Les Helléniques, 1967, II, III, 56 apud GOTO, 2010, p. 110): “há uma coisa que me parece admirável neste homem: é que em face da morte ele não perdeu nem sua presença de espírito nem seu bom humor”. Com a morte do sábio Sócrates, Atenas “perde a oportunidade de preservar e manter consigo aquele que, muito mais do que propor uma filosofia de caráter ou conteúdo democrático, praticava a democracia na forma mesma de seu filosofar, vivendo esse filosofar como uma ação entranhadamente democrática” (GOTO, 2010, p. 122).

            Por que Sócrates se achava tão sereno diante da morte? A análise que Sócrates faz a respeito da morte se baseia em duas alternativas: ou de que a alma permanece viva em outra vida ou de que cessa de existir completamente. Eis porque a morte deve ser pensada como algo bom pois, se a alma continua a existir em outra vida, ela irá ao encontro de grandes homens, como: Orfeu, Hesíodo, Homero, o que pode ser motivo de uma felicidade inconcebível. Outro motivo é que “os seres imortais não precisam mais passar a sua existência evitando o mal o máximo possível porque não serão mais apanhados pela vilania” (SILVA, 2016, p. 93).

            O desprezo de Sócrates pela morte é semelhante àquele que ele remete ao herói Aquiles, mencionado em um trecho da Apologia de Sócrates. Sócrates põe para si a questão de se ele não sente vergonha de ter se dedicado a tal ocupação (de se dedicar ao deus para investigar seus concidadãos de seus conhecimentos) e que agora, corre o risco de morrer. Holanda (2018, p. 25) ressalta que a resposta de Sócrates “gira em torno da única genuína preocupação de um homem de mérito, a saber, se o que faz é justo ou injus­to”. Da mesma forma como Aquiles – em uma passagem da Ilíada de Homero, Aquiles vai deliberadamente ao encontro da morte para vingar Pátroclo –, havia demonstrado desprezo pela morte, preferindo encarar a morte do que a desonra, assim Sócrates se coloca diante de seus julgadores. “Segundo a retomada socrática da Ilíada, Aquiles é referência para Sócrates porque sua coragem guerreira o impulsiona a temer a coisa certa e faz dele o que ele é” (id., ibidem, p. 31).

            Analisando a amplificação na elaboração de discursos epidíctitos, Orlandi (2012, p. 275) pondera:

Assim como o herói homérico, diz Sócrates, ele também prefere a morte à vida desonrada. A comparação com um homem de renome ou uma figura semidivina como Aquiles salienta a grandeza, a beleza e a superioridade de Sócrates entre seus contemporâneos e constitui, dessa forma, uma amplificação de suas ações.

            A forma como o Φιλοσοφος encara a morte faz com que Sócrates seja até “capaz de zombar de seus juízes e de provocá-los, e isso precisamente para selar seu discurso – que defende que a injustiça é mais perigosa do que a morte - com a maior das coerências” (HOLANDA, 2018, p. 32-33).

 

Referências Bibliográficas

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[1] O Sócrates do qual fazemos referência é, sobretudo, o Sócrates que nos foi transmitido por Platão. Seria difícil entender que Platão tivesse atribuído a Sócrates um papel tão literário, sem conceber ao menos em parte a figura do próprio Sócrates, ou seja, seria difícil entender um Platão tão espiritualista, sem um mestre, Sócrates, ele mesmo, espiritualista. O que não nos impede de reconhecer a grande dificuldade da questão da delimitação de fronteiras entre o pensamento de Sócrates e o pensamento de Platão dentro dos próprios Diálogos platônicos.

 

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