Henri Bergson

Ele era o orgulho de nossa Companhia. Que sua metafísica tenha ou não nos seduzido, que nós o tenhamos ou não seguido em sua investigação profunda à qual ele consagrou toda sua vida [...] nós temos nele o exemplar mais autêntico das mais elevadas virtudes intelectuais. Uma espécie de autoridade moral nas coisas do espírito prendeu-se ao seu nome, que era universal.

Paul Valéry (1941 – tradução livre)

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por Alexsandro M. Medeiros

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postado em jul. 2018

 

            Henri Bergson foi um filósofo e diplomata francês, nascido em 1859 e que faleceu nos primeiros anos da segunda grande guerra, em 1941. Uma de suas obras mais conhecidas, Ensaios sobre os dados imediatos da consciência, foi a sua tese de doutorado defendida em 1889, pela Universidade de Paris. No final do século XIX se tornou professor da Escola Normal Superior de Paris e logo em seguida do Collège de France. Recebeu o prêmio Nobel de literatura em 1927. Sua filosofia pode ser classificada como uma fenomenologia evolucionista espiritualista intuicionista. Vejamos o que isso quer dizer.

            Em sentido amplo, a fenomenologia é uma corrente filosófica oriunda das ideias do filósofo Edmund Husserl (1859-1938) que afirma a importância de estudar os fenômenos em si mesmos e segundo o qual todos os fenômenos do mundo devem ser pensados a partir das percepções mentais dos seres humanos. Sobre a fenomenologia bergsoniana, Pondé (apud FARIA, 2009, p. 1) afirma, em introdução ao livro A intuição e a mística do agir religioso que “Bergson participou da ‘virada’ fenomenológica no início do século XX, e é, de certa forma, um Husserl à la française. Seu chamado a um retorno aos ‘dados imediatos da consciência’ é na realidade uma atitude filosófica crítica”.

            Por outro lado Bergson tematiza a teoria evolucionista em debate com seus mestres: Ravaisson (1813-1900), Lachelier (1832-1880) e Boutrox (1845-1921); além das teorias de Taine (1828-1895) e Spencer (1820-1903). Tais pensadores fazem parte do que podemos chamar de evolucionismo positivista, como ressalta Faria (2009, p. 41): “Para esses filósofos, a evolução é fundamento último da teoria da realidade”. E acrescenta: “Em sua busca pelo rigor para a filosofia, Bergson se torna adepto desses pensadores, mas não concordando com o determinismo implícito a essas filosofias, e sua convicta adesão à ideia de liberdade logo rejeita esse extremo” (id., ibidem, p. 41). Segundo Prado Júnior (1989, p. 170), o evolucionismo de L'évolution créatrice (A Evolução Criadora), substituindo o evolucionismo spenceriano, propõe “uma teoria que acompanha o ritmo criador da evolução da vida, não só descrevendo o desenvolvimento da consciência humana, sua progressiva constituição, como mostra também em que direção pode ser ela própria superada”. Sobre o evolucionismo de Spencer, Bergson chega a falar de um “falso evolucionismo”,

que consiste em recortar a realidade atual, já evoluída, em pequenos pedaços não menos evoluídos, depois em recompô-la com esses fragmentos e, assim, brindar-se antecipadamente com aquilo que se trata de explicar-se por um evolucionismo verdadeiro, no qual a realidade seria seguida em sua geração e seu crescimento (BERGSON, 2005, p. XIV).

            O evolucionismo bergsoniano deve ser estudado de acordo com as ideias espiritualistas do filósofo, quer dizer, de acordo com a ideia de que além da realidade material existe um princípio espiritual que anima a todos os seres humanos. É o espiritualismo de Bergson que faz o filósofo exaltar e inovar a metafísica, em uma época em que o avanço e o êxito das investigações científicas ditas positivas pareciam tornar obsoletas as indagações filosóficas. A formação intelectual de Bergson deu-se numa época em que predominavam as teses materialistas, evolucionistas e deterministas o qual Bergson respondeu com uma concepção espiritualista de evolução se opondo a todos os que pretendiam reduzir o psíquico ao meramente cerebral. É em prosseguimento ao “positivismo espiritualista” de Jules Lachelier (1832-1918) e de Emile Boutrox (1845-1912) que se pode situar o pensamento bergsoniano. Como espiritualista “A mensagem filosófica de HENRI BERGSON é antes de tudo o testamento de um Sábio” (PENIDO, 1934, p. 13 apud ROCHA, 1960, p. 105).

            Em decorrência do seu espiritualismo, Bergson foi o expoente da linha de filosofia intuicionista, porque afirma que a intuição e não a inteligência constitui a melhor forma de captar o verdadeiro conhecimento. Segundo o filósofo, há dois caminhos para conhecer o objeto, duas formas de conhecimento, diversas e de valores desiguais: mediante o intelecto (via raciocínio lógico) e mediante a intuição (por apreensão imediata do real). A intuição distingue-se por características que se contrapõem às características da inteligência. Esta se apropria do objeto do conhecimento através de juízos, silogismos, análise. Diferente da inteligência que analisa e decompõe, a intuição é uma simples visão, que não decompõe nem compõe, mas vive a realidade da duração (outro importante conceito da filosofia bergsoniana). A intuição apreende o real imediatamente, é uma experiência direta que conduz o indivíduo ao interior das coisas. O objeto da intuição é o fluente, o que está em marcha. Finalmente a intuição seria a responsável por unir ciência e metafísica: “Ao mesmo tempo em que constituiria a metafísica como ciência positiva – progressiva e indefinidamente perfectível – levaria as ciências positivas propriamente ditas a tomar consciência de seu verdadeiro alcance, com frequência muito superior àquele que imaginam ter” (BERGSON, 2009, p. 41). Para Deleuze (1999) a intuição é o próprio método da filosofia bergsoniana ou do bergsonismo como ele chama, e constitui um método plenamente desenvolvido pelo filósofo francês.

 

Evolução e a Vida em Sociedade

            “A história da evolução da vida”, inicia Bergson (2005, p. IX) na introdução da obra A Evolução Criadora, “já nos deixa entrever como a inteligência se constituiu por um progresso ininterrupto ao longo de uma linha que, através da série dos vertebrados, se eleva até o homem”. A  vida em sociedade é o resultado desse processo evolutivo: “a sociedade é encarada por Bergson como algo natural, proveniente da evolução da vida” (BONADIO, 2013, p. 85). E o homem é um ser vivo que, por evolução, seguiu na direção da vida social.

            As duas obras que abordam esse processo de desenvolvimento e que em certa medida se complementam são: A Evolução Criadora (de 1908) e As Duas Fontes da Moral e da Religião (de 1932). “Pressupomos a hipótese de que ambos os livros, A evolução criadora e As duas fontes..., podem ser lidos como uma continuidade, como dois momentos em que as ideias se complementam e se interpenetram...” (FARIA, 2009, p. 40). Nestas duas obras Bergson ressalta como os conceitos de vida e consciência são os dois termos primordiais do processo evolutivo. “Tudo se passa como se uma ampla corrente de consciência tivesse penetrado na matéria” (ABBAGNANO, 1970, p. 28).

            Mas a linha da evolução que desemboca na consciência humana não é a única e tampouco é um processo linear. “A evolução é uma força explosiva, cujos fragmentos podem, por sua vez, explodir em novas linhas evolutivas” (GOMES, 2012, p. 262). De fato, desenvolveram-se outras formas de consciência que se manifestam de formas diferentes seguindo direções divergentes: uma é a via da inteligência, outra a dos instintos. “Inteligência e instinto são formas de consciência que se devem ter interpenetrado no estado rudimentar e que se dissociaram ao avolumar-se...” (BERGSON, 1978, p. 22). Inicialmente o processo evolutivo se deu basicamente através de formas de consciências instintivas e, em algum momento desse processo, o instinto deu lugar à formas de consciência inteligentes: “Devemos sempre ter em mente que o domínio da vida é essencialmente o do instinto, que em certa linha de evolução o instinto cedeu uma parte de seu lugar à inteligência” (BERGSON, 1978, p. 107). E Zunino (2013, p. 162) complementa: “A inteligência e o instinto estariam amalgamados de início; mas desenvolveram-se em duas linhas divergentes de evolução: (1) o instinto nas sociedades de insetos (formigas e abelhas); e (2) a inteligência na sociedade humana”.

            O ser humano, diferente da formiga que trabalha de forma instintiva para o formigueiro, tem a faculdade de escolher mediante a inteligência e todas as implicações daí decorrentes, como as escolhas individuais que levam ao julgamento moral e as manifestações religiosas que por sua vez são oriundas, como a própria sociedade, da evolução da vida. Na linha da evolução animal a natureza seguiu o caminho do instinto. Na da evolução do homem seguiu o caminho da inteligência e abriu a possibilidade para a escolha individual.

            Além da inteligência a natureza humana caracteriza-se pela sociabilidade tal como abelhas e formigas, sendo que estas últimas o fazem de modo completamente determinado e instintivo. A obra As duas fontes da moral e da religião é onde Bergson “desenvolve suas ideias de filosofia social, moral e da religião. Isto porque é sobre sua conceituação de religião que o pensador apóia suas ideias de filosofia social e moral” (FARIA, 2009, p. 4). A vida em sociedade está diretamente atrelada à moral e à religião, como podemos perceber em sua obra As Duas Fontes...

            Outro aspecto relevante é que a obra As Duas Fontes da Moral e da Religião aborda uma dualidade entre o aberto e o fechado que estão presentes tanto no aspecto moral (primeiro capítulo) e religioso (segundo e terceiro capítulo), quanto social. Trata-se da moral aberta e da moral fechada, da religião estática e da religião dinâmica e da sociedade aberta e da sociedade fechada. O título da obra já revela essa dualidade:

Há duas fontes ou duas espécies de moral e de religião e é muito importante distingui-las. Essa distinção nova será a distinção entre o “fechado” e o “aberto”: serão fechadas todas as morais e religiões que se distinguem umas das outras por exclusão mutua, como grupos por fronteiras, o que conduziria, no limite, à guerra; serão abertas as morais e as religiões que se endereçam sem exceção a todo mundo, sem traçar nenhum limite em nenhum espaço (ZUNINO, 2013, p. 161).

            Essa dualidade se revela no campo social. A sociedade fechada é aquela organizada segundo hábitos e obrigações que responde pela coesão social e

nos prepara para obedecer através de uma educação que começa no dia em que nascemos e continua ininterrupta em todos os instantes. Daí a nossa disposição, quase natural, para adquirir certos hábitos sociais aos quais obedecemos sem pensar. Na maioria de nossas ativi­dades cotidianas, obedecemos às exigências da sociedade, como se uma força, que Bergson chama “o todo da obrigação”, exercesse um peso sobre nós (ZUNINO, 2013, p. 161-162).

            Nas sociedades fechadas os indivíduos ligam-se uns aos outros por obrigações estritas de modo quase automático e sem que necessariamente tenhamos consciência disso. Encontramos a sociedade como está e seguimos o seu caminho. “A sociedade traçou um itinerário; encontramo-lo aberto diante de nós e o seguimos [...] Assim compreendido, o dever é cumprido quase sempre automaticamente; e a obediência ao dever, se nos ativermos ao caso mais frequente, se definiria como um ir a esmo ou um desleixo” (BERGSON, 1978, p. 16)

            Do outro lado temos a sociedade aberta que implica a humanidade inteira e não apenas a família ou a pátria e se revela através do sentimento de fraternidade pela humanidade ou ainda no amor pela humanidade.

A vida poderia ter parado nas sociedades fechadas: naquelas compostas por seres inteligentes haveria mais variação que nas instintivas, mas estarí­amos bem longe do “sonho de uma transformação radical”, isto é, de uma sociedade única que englobasse todos os homens. Talvez essa sociedade não exista nunca! Mas, “de longe em longe”, apareceram homens de gênio (artistas, cientistas) que ampliaram os limites da inteligência; o ímpeto vital se manifesta nessas almas privilegiadas (místicos) que visam a humanidade em geral, ao invés de permanecerem nos limites do grupo, acatando a solidarie­dade estabelecida pela natureza (ZUNINO, 2013, p. 167).

 

Referências

ABBAGNANO. História da Filosofia. Vol. XII. Lisboa: Editorial Presença, 1970.

BERGSON. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

____. A Evolução Criadora. Tradução Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Coleção Tópicos)

____. La pensée et le mouvant. Ed. Critique sous la direction de F. Worms. Paris: PUF, 2009.

BONADIO, Gilberto Bettini. Moral: vida e emoção. Kinesis, vol. 5, n. 10, p. 84-100, dez. 2013. Acessado em 12/06/2016.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 1999.

FARIA, Marco Antônio B. Vida e Criação: a Religião em Bergson. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião). Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. Universidade Ferderal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2009.

GOMES, Ana Beatriz A. Bergson e a evolução da vida. Kínesis, vol. IV, n. 07, p. 254-272, jul. 2012. Acesso em 04 jul. 2018.

PRADO JÚNIOR, Bento. Presença e Campo Transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Bergson. São Paulo: EDUSP, 1989.

ROCHA, Zeferino. O misticismo na filosofia de Henri Bergson. Symposium – Revista da Universidade Católica de Pernambuco, v. 1, n. 2-3, p. 105-120, 1960. Acesso em 08 jun. 2018.

ZUNINO, Pablo E. A. O filósofo e o místico: da sociedade fechada à ruptura moral. Atualidade Teológica, ano XVII, n. 43, p. 157-170, jan./abr., 2013. Acesso em 04 jul. 2018.

PENIDO, M. T-L. Dieu dans le Bergsonisme. Paris: Desclée, 1934.