A Tragédia na Poética de Aristóteles

01/04/2018 22:24

por Alexsandro M. Medeiros

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            A obra Poética de Aristóteles tem sido tomada como um parâmetro de análise do drama trágico e até mesmo um cânone para a produção artística ao longo dos séculos. Para Aristóteles a tragédia é uma arte mimética, uma forma específica de imitação, de uma ação de caráter elevado que, suscitando o terror (φόβος – phobos) e a piedade (ἔλεος – eleos), tem por efeito a purificação, a catarse (kάϑarsiς – katharsis), dessas emoções.

Diferente da comédia, que imita homens inferiores com o objetivo de fazer uma sátira ao comportamento de homens dessa categoria, a tragédia tem como protagonistas homens nobres e ilustres, cujas ações refletem a grandeza e a elevação moral desses personagens (CAMPOS, 2012, p. 35).

            Na Poética, Aristóteles escreve (2008, 1449 b 24):

A tragédia é a imitação de uma acção elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que se serve da acção e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões (nas citações da obra da Poética, fizemos a opção pela referência universal que existe na tradução ao invés do número da página, o que facilita encontrar a referida citação independente da tradução, desde que contenha a referência universal).

Disponível em: Slideplayer, slide 1 (Acesso em 28/03/2018).

 

            Ao procurar descrever o impacto causado pela tragédia no público, Aristóteles encontra no terror e na piedade a resposta para a finalidade de tal representação. A tragédia imita ações por meio dos personagens que, por sua vez colocam em evidencia tipos diversos de caráter, como o caráter nobre do herói suscitando terror e piedade no público que, assim, passa por uma purificação destas duas paixões.

            Em relação ao terror e à piedade Pereira (apud ARISTÓTELES, 2008, p. 15) destaca as seguintes passagens da obra:

da primeira diz-se que “é uma aflição ou perturbação resultante de se imaginar que suceda uma desgraça destrutiva ou dolorosa (....) e que esses acontecimentos não pareçam distantes, mas próximos e imediatos” (1382a 21-22, 23-25); da segunda, refere-se que “daqueles que são atingidos pela desgraça sem o merecer devemos compartilhar a pena e ter compaixão” (1386b 12-13).

            Para Aristóteles, o poeta trágico deve procurar fazer despertar no seu público as duas emoções: o terror e a piedade (2008, 1453b e ss.), que por sua vez irão produzir a catarse[1].

Sensibilizando-se com o horror dos acontecimentos em cena, a tragédia suscita no espectador, simultaneamente, um sentimento de compaixão pelo herói, devido ao destino que lhe foi reservado; e de grande horror (terror) diante das mortes, ferimentos e dores que se narram em cena (CAMPOS, 2012, p. 24).

            Nas narrativas trágicas a catástrofe caracterizava um dos pontos altos do espetáculo e por meio do qual o poeta despertava comoção e pavor no público que acompanhava a trajetória de algum célebre herói.

            A tragédia está dividida em seis partes:

enredo (mythos), caracteres (ethe), elocução (lexis), pensamento (dianoia), espectáculo (opsis) e música (melopoiia). Mas, ao passo que de mythos dirá que é “o princípio e como que a alma da tragédia” (1450a 38-39), das duas últimas só escassamente se ocupará (PEREIRA apud ARISTÓTELES, 2008, p. 13 – ver também p. 21-29).

Disponível em: Perí poietikés (Acesso em: 28/03/2018)

            Podemos ressaltar pelo menos duas fontes de inspiração da tragédia grega: os mitos e a atualidade política de Atenas. Não era incomum a tragédia tratar de temas relacionados ao poder dos tiranos como abuso de poder, crimes e homicídios e, assim o fazendo, a tragédia conseguia abalar o público em suas emoções. Ou então retomar as histórias tantas vezes contadas pelos antepassados em torno dos mitos.

            Dentre aqueles poetas mais conhecidos e que alcançaram grande sucesso devido a sua habilidade ímpar de compor enredos que revelavam surpreendentes desenlaces trágicos estão Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Juntos, eles teriam produzidos mais de trezentas peças:

Segundo os testemunhos históricos, parece que Ésquilo havia composto cerca de noventa tragédias, Sófocles mais de cem (Aristófanes de Bizâncio identificava cento e trinta) e Eurípides teria escrito noventa e duas, das quais sessenta e sete eram ainda conhecidas na época em que se escrevia a sua biografia (ROMILLY, 1970, p. 10 apud CAMPOS, 2012, p. 16).

Disponível em: José Miguel Roselló (Acesso em 28/03/2018)

 

Ação, Deliberação e Destino

            Vimos que Aristóteles concebe a tragédia como mímese de uma ação que são executadas pelos personagens. A imitação das ações representadas revelam diferenças de caráter dos homens e expressa seus pensamentos através de suas diferentes formas de agir. Com isso a tragédia apresenta o protagonista na situação de agente, geralmente em situações de conflito e diante de uma decisão que precisa tomar.

Os resultados e a responsabilidade desta escolha fazem com que o agente se veja completamente envolvido com as suas terríveis consequências. Momento alto do drama, a catástrofe reflete o instante de desespero do personagem que, consciente do seu erro, age de uma forma terrível, despertando com algum gesto, grande pavor no público. Ao final da tragédia, um grande lamento decorrente da catástrofe toma conta da cena e, transmitindo sua mensagem, geralmente, o poeta encerra a história com um final infeliz (CAMPOS, 2012, p. 17).

            Na tragédia ação e destino estão intimamente relacionados e representa a inevitável dependência do destino em relação ao caráter do herói. “A perspectiva da ação humana mediante o destino funesto imposto pelas divindades é o pano de fundo da narração trágica” (CAMPOS, 2012, p. 31).

Na tragédia, o infortúnio que sobrevém ao homem na forma de uma grande adversidade nos é apresentado pelos personagens como o destino (daímona) desejado pelos deuses [...] As ações perniciosas que se narram na cena dramática, como as mortes e tantas outras manifestações dolorosas surgem de uma circunstância construída desde o início da trama e no contexto da qual o herói se encontra na iminência da catástrofe. Uma vez configurada uma situação de conflito, a tragédia mostra a seu público como a decisão deliberada do herói participa do seu destino (CAMPOS, 2012, p. 63).

            Aqui temos um aparente paradoxo entre uma situação que já está determinada pelo destino e a possibilidade de ação/deliberação do agente. A ação está, precisamente, na escolha sensata do indivíduo que diante de uma situação de conflito configura a prudência no agir, que é a qualidade da alma virtuosa “que precisa ponderar suas escolhas entre prazeres e sofrimentos para encontrar a justa medida do bem agir em uma situação determinada” (CAMPOS, 2012, p. 68).

            O homem prudente é homem que delibera bem antes de agir, que utiliza a razão para o cálculo das situações. Mesmo diante do infortúnio o agente se vê diante de uma escolha e deve agir. Na tragédia o personagem se vê diante de uma situação que precisa enfrentar e resolver. O modo como as circunstâncias do conflito são avaliadas pelo herói, e como isso influencia sua ação deliberada (a solução encontrada ressalta a honra e nobreza desses personagens) revelam a qualidade do herói.

            Diante do conflito do herói, o público lamenta o fim do personagem cuja vontade de bem agir revelava seu bom caráter. E é nesse momento que o espectador do teatro se compadece do herói e, assim, o poeta, coloca seu espectador diante da condição humana, estabelecendo uma relação de identidade entre o herói e o público.

            As tragédias exploram os aspectos da ação humana relacionados com o destino, a catástrofe, o trágico, o infortúnio e explora os inúmeros reveses que ocorrem inclusive com as pessoas de bom caráter.

 

Referências

ARAÚJO, Maria C. A Poética de Aristóteles sob a abordagem de Lígia Militz da Costa. Kalíope, São Paulo, ano 7, n. 14, p. 70-82, jul./dez., 2011. Acesso em 08/02/2018.

ARISTÓTELES. Poética. Prefácio de Maria Helena da Rocha Pereira. Tradução e notas de  Ana Maria Valente. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.

BUARQUE, Luisa. Ética poética: a contingência e a ação tragédia segundo Aristóteles.  Kléos, n.19, p. 113-136, 2015. Acesso em 09/02/2018.

CAMPOS, Joyce Neves de. Ação, destino e deliberação na tragédia grega e na Ética aristotélica. Dissertação (Mestrado em Filosofia). 81 f. Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2012.

LEAL, Tito Barros. Ética entre tragédia e filosofia: as mutações do agir-ético no processo histórico transitorial dos universos arcaico e clássico na Grécia antiga. Kínesis, Vol. II, n° 03, p. 220 – 237, Abril-2010.

ROMILLY, Jaqueline de. A tragédia grega. Lisboa: Edições 70, 1970.



[1] Para aprofundar a discussão sobre a ideia de catarse, ver: Pereira (apud ARISTÓTELES, 2008, p. 15-21).

 

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