Parte II - Democracia e Soberania

14/09/2017 21:31

            Em um Estado republicano, a soberania pertence ao povo e não pode ser alienada. “E o que é, segundo Rousseau, a soberania? Não é outra coisa, senão o exercício da vontade geral, sendo esta, a vontade do corpo do povo e tendendo sempre ao bem comum” (ANTUNES, 2006, p. 60). Para Rousseau a soberania se exerce através do poder legislativo que, em um Estado legítimo, somente pode ser exercido pelo povo, único detentor do poder soberano. “O soberano, constituído pelo pacto social, é o povo incorporado, ditando a vontade geral, cuja expressão é a lei” (CHEVALIER, 1999, p. 170). E mais adiante: “A soberania, ou poder do corpo político sobre todos os seus membros, confunde-se com a· vontade geral, e seu caráter é exatamente o dessa vontade: inalienável, indivisível, infalível, absoluta” (id., ibidem, p. 171). A concepção de soberania de Rousseau se a opõe aquela de Pufendorf, que defende a possibilidade de a soberania ser alienada, ou seja, transferida a terceiros e que “caso a transferência da soberania esteja fundada sobre o consentimento [do povo], então a soberania dada ao governo se torna legítima” (DERATHÉ, 1979, p. 254). E por que a soberania não pode ser dividida? Porque, segundo Antunes (206, p. 64), ao “dividir-se a soberania, divide-se a vontade geral, o que, conseqüentemente, causa a sua destruição, degenerando-a em vontade particular” (ANTUNES, 2006, p. 64)

Soberania do Povo, isto é, dos cidadãos em conjunto, soberania inteiramente abstrata, em substituição à soberania concreta de um Luís XIV, usurpada sobre a de Deus! Soberania que opõe a O Estado sou eu, do monarca absoluto, O Estado somos nós, dos governados em conjunto! (CHEVALIER, 1999, p. 174)

            Ao considerar que o exercício da vontade geral é a soberania é preciso ressaltar a distinção que existe entre ambas, a partir de um pequena sutileza.

No capítulo IV do livro II do Contrato Social, Rousseau apresenta de forma mais explícita essa distinção. A este propósito veja citação a seguir: “[...] o pacto social proporciona ao corpo moral e político um poder absoluto sobre todos os seus membros, poder este que Rousseau chama soberania e é dirigido pela vontade geral”. A partir dessas afirmações é possível aceitar que soberania e vontade geral se distinguem, sendo aquela o poder do corpo político e esta o que lhe dá movimento e direção. A vontade geral se apresenta como legitimadora do poder político, sendo ela a expressão da soberania do Estado, o qual é o corpo político formado pelo conjunto de todos os cidadãos através do contrato social. Soberania e vontade geral se apresentam numa relação de complementariedade. O conceito de vontade geral, é fundamental na construção teórica de Rousseau. Por isso mesmo, este conceito é discutido incansavelmente e ponto de muita polêmica, sendo apontado como contraditório ou, no mínimo, paradoxal. (ANTUNES, 2006, p. 72).

 

            Outra distinção que deve ser feita é em relação a concepção de democracia e república. Para o genebrino, o Estado que delega o governo a uma pessoa ou grupo, deixa de ser uma democracia. Mas ao mesmo tempo em que o Estado deixa de ser uma democracia, ele continua sendo uma república na medida em que o legislativo permanece inalienável e intransferível (no momento em que o povo não detém mais o poder legislativo, também perde sua soberania, sendo apenas súdito ou escravo e não mais soberano ou cidadão). Nesse sentido, pode-se dizer que, para Rousseau, a monarquia e a aristocracia são formas legítimas de governo, desde que republicanas. Todo governo regido por leis, entendendo-se que tais leis são a expressão da soberania da vontade geral, é republicano e legítimo. As leis que regem esses Estados, por sua vez, correspondem à vontade geral quando ratificadas pelo povo, corpo político ao qual pertence essa vontade soberana. A partir daí, monarquia, aristocracia e democracia são formas legítimas de governo, que devem ser adotadas conforme as condições do Estado.

            Em um Estado republicano, como dizíamos, a soberania deve ser manifestada pela capacidade legislativa, e o executivo, ou administrador (príncipe ou presidente), é apenas um agente que aplica a lei aos casos específicos; sendo seu poder simples concessão do soberano. Além disso, a separação entre Poder Legislativo (que trata do interesse geral) e Poder Executivo (que trata da aplicação das leis à casos particulares) visa impedir o abuso da autoridade soberana. Em Rousseau é explícita a separação entre o poder legislativo e o poder executivo: aquele que executa as leis é um mero funcionário de quem as ratifica.

            Soberania e poder legislativo fundem-se na figura do povo contratante. Sendo o contrato (pacto) firmado entre cada indivíduo e o conjunto destes, cabe unicamente ao povo o poder soberano, que se trata da autoridade máxima e inquestionável. Cabe necessariamente ao povo ratificar suas leis, visto serem estas a expressão da vontade geral. O governo, que se ocupa da execução daquilo que já está prescrito pela lei, é considerado mero funcionário do soberano por ser encarregado de uma função secundária.

O governo não pode ser confundido com o soberano, pois aquele está a serviço deste, que é o corpo do povo e possui o direito de legislar, enfim, o poder de decisão. A vontade é geral e a força deve submeter-se a ela concorrendo para sua realização. Ao governo, sendo “um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como política”, cabe analisar e tratar das questões particulares (ANTUNES, 2006, p. 70).

            Exprimir as vontades do corpo político cabe somente a este: no caso, o povo. O ato de executar aquilo que pede uma vontade já expressa é uma função que pode ser delegada a outro, neste caso, o governo.

            Nesse sentido podemos dizer que o poder legislativo tem uma função superior à do poder executivo e, quanto ao primeiro, não pode haver transferência deste poder do soberano para qualquer tipo de representante. “Devemos enfatizar que tal poder não pode ser representado pelo mesmo motivo pelo qual a vontade geral não o pode: o ato de querer não é representável. Ninguém pode querer pelo outro, muito menos por todo um povo” (GOMES, 2006, p.47). Quanto ao poder executivo, este sim pode ser exercido por funcionários designados pelo povo.

            Rousseau critica a ideia de representação sobretudo no que diz respeito ao soberano e sua função legislativa. Para Rousseau, a representação política traz consigo um problema grave, que deve ser combatido nos seios do Estado, qual seja, o tráfico dos interesses privados nos negócios públicos. Já a representação no poder executivo leva a uma discussão diferente daquela sobre a mesma no legislativo. A primeira discussão remete à pergunta sobre a melhor forma de governo, que, segundo Rousseau, depende de cada Estado. A segunda discussão traz a problemática da impossibilidade de representar a vontade geral e, por sua vez, a soberania nacional. Ele enfatiza a ligação entre soberania e poder legislativo para não deixar dúvidas de que somente o que for ratificado pelo povo soberano em forma de sufrágio popular pode ser considerado lei. Quaisquer decretos feitos por funcionários do executivo são abusos do Governo. Dessa forma, o legislativo não pode ser representado, mas o executivo, que é submisso ao primeiro, pode (GOMES, 2006, p. 70-71).

            Apesar de Rousseau ser partidário da democracia direta, entendendo a representação como uma forma de alienação da soberania, razão pela qual ela é inalienável, existe espaço para a representação no Contrato, a partir da figura dos deputados do povo, sendo que estes são apenas seus comissários.

            A questão sobre a representação passa em Rousseau pela pergunta sobre o que pode ou não ser representado. A busca pela resposta partirá dos conceitos de vontade geral e soberania popular. O poder soberano pertence ao povo em união. É nessa união que se forma a vontade geral, que não pode de forma alguma ser transferida ou representada. Perguntamos então a Rousseau: o que é que não pode ser representado? Sua resposta é: a vontade soberana do povo.

            O governante de uma nação a representa na medida em que age em nome de seus cidadãos. Ele não substitui o povo em sua soberania, apenas age no lugar dele, devendo respeito aos detentores deste poder. Rousseau dizia que a vontade geral, identificada com o poder soberano, não pode ser representada. Nesse caso, não é a vontade que o governante representa: ele age no lugar do povo, mas a sua vontade não toma o lugar da vontade geral. Ele tem a autonomia necessária para agir sem a necessidade de a cada passo consultar o povo a que representa. Mas em cada atitude ele tem a consciência de sua responsabilidade nesse cargo, pois deve prestar contas periodicamente e pode ser destituído de seu posto caso não faça seu trabalho honesta e corretamente.

            Essa discussão em torno de uma democracia direta ou representativa leva a uma série de dilemas e, por mais difícil que seja a instituição de uma democracia no sentido literal do termo, a participação direta de todos os cidadãos nas decisões do governo é a única maneira em que se dá uma administração que possa ser corretamente chamada de democracia. Por outro lado, exercer diretamente o poder executivo, por menor que seja o Estado e por mais simples que sejam suas questões a serem resolvidas, exige um tempo e uma dedicação dos quais raramente dispõe a maioria dos cidadãos.

Daí que, por falta de tempo, estrutura e, no entender de Rousseau, principalmente por comodidade, são eleitos representantes para realizar as tarefas políticas. O principal problema está no fato de que, dentre essas tarefas políticas, encontra-se também a aprovação das leis do Estado, tarefa cabível somente ao povo soberano. A aprovação das leis corresponde ao poder legislativo e este é inalienável e não pode ser representado por ser a expressão da vontade geral. Contrariando essa exigência do Contrato, o poder legislativo comumente é delegado a representantes que, como o próprio nome dá a entender, têm a permissão para tomar decisões em nome do povo. O povo, por sua vez fica à mercê das atitudes destes representantes, sendo obrigado a obedecer leis que não foram ratificadas diretamente por ele. Segundo o genebrino, a representação serve somente para escravizar o povo, que prefere a comodidade da escravidão a uma liberdade cheia de responsabilidades civis (GOMES, 2006, p. 51-52).

            Ademais, a participação popular pode e deve ser incentivada e possibilitada através da Educação. É a constante participação no exercício do poder que contribui com a educação de cidadãos ativos. A contribuição se dá pela experiência direta, proporcionando ao cidadão uma visão mais clara do funcionamento do governo e exigindo dele maior consciência dos problemas do Estado. Participação popular e educação se fundem num círculo que deve ser preservado e aprimorado a cada instante, de geração em geração (GOMES, 2006, p. 66).

            O que se faz necessário para que o sistema republicano funcione bem é que seja investido na educação dos indivíduos que compõem o Estado para que estes se tornem cidadãos participativos.

Jean-Jacques Rousseau A Democracia em Rousseau Parte II - Democracia e Soberania

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A Democracia em Rousseau