A Democracia Participativa como um novo modelo de Contrato Social

por Alexsandro M. Medeiros

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publicado em jan. 2016

            Diante da crise do modelo de representatividade democrática e da possibilidade de se criar novas alternativas considerando que o jogo democrático ainda é o mais viável, e talvez o único, para sociedades complexas como a nossa, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos nos conduz a pensar esse modelo alternativo através de um modelo de democracia participativa que configura um novo modelo de contrato social, de acordo com a acepção moderna do termo, e que aparece em várias de suas obras (SANTOS, 1999, 2002 e 2007): “[...] um novo contrato social não só é possível, como imprescindível para que no século que se inicia tenhamos mais democracia, mais desenvolvimento, enfim, mais justiça social” (PEREIRA NETO, 2003, p. 69). De acordo com Marcus Pereira e Ernani Carvalho, os trabalhos de Boaventura podem ser enquadrados em três macroáreas “[...] Direito e Sociedade, Filosofia ou Epistemologia das Ciências Sociais e Democracia” (p. 45). Atuando nestas três grandes áreas, o sociólogo português se tornou uma referência obrigatória nas mais diferentes disciplinas das Ciências Sociais no Brasil (Direito, Educação, Serviço Social, Ciência Política, Sociologia etc.), sendo a que mais nos interessa aqui suas reflexões em torno da Democracia, com ênfase nos estudos vinculados às teorias participativas da democracia, e de um novo Contrato Social.

            A ideia de um novo contratualismo ou, pelo menos, a ideia de se repensar o modelo de contrato social vigente no sentido de incorporar novas questões que não foram destacadas pelas teorias contratualistas modernas não é nova e já foi pensada também por diferentes autores como Danilo Streck (2003), Michel Serres (1990), Charles Mills (1997) e Carole Pateman (1993)[1]. Neste artigo vamos procurar contextualizar como um modelo de democracia participativa pode configurar um novo tipo de contrato social incorporando estas diferentes visões.

            Por contrato social podemos entender um conjunto de normas, leis, princípios etc., que regulam a vida em comum, desde as relações de trabalho, direitos fundamentais, organização política e até o comércio entre países (normas, leis e princípios que devem ser expressos em uma Constituição e, nesse sentido, podemos dizer que a Constituição de um país representa a lei máxima de um contrato que é estabelecido entre a sociedade e o Estado). A ideia de contrato social abrange “[...] as relações entre as pessoas, a configuração do aparato institucional, as formas de exercício do poder, entre outros aspectos que dizem respeito à vida humana em sociedade e no planeta” (STRECK, 2003, p. 42). Desta forma um novo contrato significa que essas relações devem obedecer a novos critérios e parâmetros.

            A ideia de um contrato social é uma teoria moderna e surge com pensadores como John Locke, Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau. A partir da concepção de um estado de natureza, Hobbes, Locke e Rousseau constroem e elaboram suas teorias. “Hobbes descreve um estado de violência, de guerra de todos contra todos, que exigirá um Leviatã (o Estado) para exercer legitimamente o controle para a sobrevivência de todos” (STRECK, 2003, p. 46). Mas é com Rousseau que “[...] se chega ao ponto culminante da discussão acerca de democracia[2] e da presença do interesse público no Contrato Social, dado que somente a vontade geral pode direcionar a força do Estado no cumprimento da razão de ser de sua instituição – o bem comum” (ZENI; RECKZIEGEL, 2009, p. 9345). E hoje somos desafiados a responder perguntas muito semelhantes àquelas que estavam na origem das teorias contratualistas modernas, a partir do esgotamento de um determinado tipo de contrato na contemporaneidade, que nos motiva a buscar alternativas para certos problemas sociais que só tendem a aumentar, como a concentração de riquezas, o esgotamento dos recursos naturais, a situação de extrema pobreza dos países africanos. Que tipo de contrato legitimava, por exemplo, o apartheid?

            Se por um lado hoje somos chamados a responder perguntas semelhantes àquelas que estavam na origem do contratualismo moderno, por outro lado vivemos um tempo bem diferente em que somos desafiados também a responder questões novas e que não foram, e talvez nem poderiam ser, previstas pelos filósofos modernos: “[...] o Contrato Social desde Hobbes até Rousseau sofreu evoluções a ele agregando-se conteúdos cada vez mais complexos em sintonia com o próprio Estado que desenvolveu mudanças de caráter prático” (ZENI; RECKZIEGEL, 2009, p. 9346). E um novo contrato social deve levar em consideração os novos desafios que se impõem na atualidade e, segundo Susan George, seriam pelo menos um conjunto de quatro grandes crises: “crise ambiental, crise da pobreza e da desigualdade, crise da democracia e crise econômica [...] um contrato planetário que faça frente a estas quatro crises é imprescindível para evitar o tipo de conflito que o mundo vive hoje” (apud STRECK, 2003, p. 63), dentre as quais podemos acrescentar também como questões que devem estar presentes na pauta do novo contrato as questões de gênero, raça e etnia, além da questão da globalização[3], por exemplo.

            Quem chama a atenção sobre o modo como o contrato social moderno aprofundou o processo de crise entre a ação do homem e os recursos naturais do planeta foi Michel Serres em seu Contrato natural e argumenta que “o contrato social moderno é insuficiente e precisa ser complementado pelo ‘contrato natural’” (STRECK, 2003, p. 52). É preciso pensar, em concomitância com um contrato social, um contrato natural, que leve em consideração as relações sociais de forma mais abrangente, dentro de uma visão que leve em consideração a vida e o meio ambiente e o mundo ao nosso redor, desde o ar que respiramos até as frutas que saboreamos e o alimento que produzimos.

            Se para Rousseau o contrato social deu origem as desigualdades sociais e a todos os problemas decorrentes do surgimento da propriedade privada; se para Hobbes a iniciativa de empreender um acordo mútuo surge da necessidade de garantir a preservação da espécie humana; é preciso considerar que este contrato foi também um contrato de opressão, discriminação e exploração sexual e racial, na visão de Carole Pateman e Charles W. Mills (apud STRECK, 2003). De onde surge a necessidade de se pensar um novo contrato social que leve em consideração também as questões de gênero e raça.

            O contrato social, “a estória política mais famosa e influente dos tempos modernos” (PATEMAN apud STRECK, 2003, p. 54), resultou de uma concordância livre de homens livres, mas se restringiu aos homens, e a poucos deles, sendo as mulheres subsumidas dentro deste acordo. Este contrato deu “cobertura moral, intelectual e jurídica para a discriminação das mulheres” (PATEMAN apud STRECK, 2003, p. 54).

            Além disso,

O europeu, branco, se define em contraposição a alguém que é inferior. A teoria do bom selvagem presta-se, assim, a colocar os povos indígenas em um patamar entre a animalidade e a humanidade, como seres que estão fora do contrato social[4]. O mesmo se aplica à escravização em massa dos negros africanos, sendo possível que mesmo um defensor da liberdade individual como Locke não visse problema em ser sócio de uma empresa que transportava escravos para o “Novo Mundo”, o mundo “virgem” a ser civilizado. Neste contexto, argumenta Mills, o holocausto judeu e outras atrocidades com a raça não são a exceção ou frutos de uma mente doentia, mas resultam de um Contrato Racial, assumido aberta ou veladamente (apud STRECK, 2003, p. 55-56).

            A ideia de um contrato social que leve em consideração os direitos das mulheres e a questão de gênero na realidade não é nova. Surge no contexto mesmo das teorias contratualistas modernas, mas não teve êxito e nem forças suficientes para entrar na pauta das discussões acalouradas das revoluções burguesas. A historiadora, jornalista, escritora e autora de peças de teatro francesa Olympe de Gouges, pseudônimo de Marie Gouze foi uma das grandes defensoras dos direitos humanos, deflagrada com a Revolução Francesa, mas logo se desencantou com seus ideais com a constatação de que os ideais da Revolução não incluíam as mulheres no que se refere à igualdade de direitos. Para Olympe de Gouges todos os direitos dos homens, enumerados pelos revolucionários em 1789, também pertenciam às mulheres e por isso ela propôs que, junto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, fosse aprovado também em Assembleia a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã.

Mulher, desperta. A força da razão se faz escutar em todo o Universo. Reconhece teus direitos. O poderoso império da natureza não está mais envolto de preconceitos, de fanatismos, de superstições e de mentiras. A bandeira da verdade dissipou todas as nuvens da ignorância e da usurpação. O homem escravo multiplicou suas forças e teve necessidade de recorrer às tuas, para romper os seus ferros. Tornando-se livre, tornou-se injusto em relação à sua companheira (GOUGES, 2015)[5].

            A partir das discussões de Michel Serres, Carole Pateman e Charles Mills, percebemos que a ideia de um “contrato natural”, um “contrato sexual”, e um “contrato racial” devem estar na pauta das discussões filosóficas, políticas, sociais e econômicas das teorias contemporâneas.

Evidenciam também que, na melhor das hipóteses, ao se continuar usando a terminologia clássica, não se deve fazer vistas grossas para o que o contrato social significou para gerações de mulheres, para os povos indígenas exterminados em massa, para os negros tratados como subumanos ou para milhões que sobrevivem em meio a uma fartura mal distribuída (STRECK, 2003, p. 56-57).

            Todas as questões até aqui mencionadas, e um sem número de outras não analisadas, devem entrar na pauta de discussão de um novo modelo de sociedade democrática que possa surgir como alternativa ao modelo contratual vigente entre Sociedade e Estado.

            Um novo contrato social “ancorado em uma alternativa democrática em que haveria uma maior participação dos trabalhadores, dos consumidores e dos cidadãos nas decisões que dizem respeito a moradia, saúde e serviços” (STRECK, 2003, p. 59). Hoje existe uma vasta bibliografia sobre como melhorar a qualidade da democracia através de processos de participação política que valorizem o cidadão como sujeito histórico e protagonista do seu futuro, desde pensadores renomados como Avritzer (2002), Habermas (2003), Boaventura, Giddens (2000) e Pateman (1992), até autores menos conhecidos como Baquero et. al., (2005) Bonfim e Silva (2003), Cassen (1998), Moufe (2000), Pase (2008) e Teixeira (2001).

            E tal é a alternativa visualizada por Boaventura de Sousa Santos: um contrato planejado democraticamente pelo Estado em parceria com a sociedade civil, o Poder Público e os cidadãos que são atingidos diretamente pelas políticas “contratualistas” contemporâneas, principalmente as minorias dos excluídos, que são os mais atingidos pelas formas de desigualdades que caracterizam o cenário atual. Um modelo de democracia diferente daquele que teve origem na Grécia antiga, onde apenas homens livres que representavam apenas 10% da população grega eram considerados cidadãos e podiam participar da coisa pública. Daí a necessidade de que o novo contrato seja um contrato que leve em consideração os direitos de todos, sem distinção de raça, cor ou sexo, na arena do jogo democrático.

            Para Boaventura o modelo de democracia representativa configura um modelo de contrato social em crise, que não atende as demandas da sociedade contemporânea e em torno do qual é preciso repensar um nodo modelo de contrato social e uma transição paradigmática: “[...] estamos vivendo em um momento de transição paradigmática, no qual o paradigma da modernidade se encontra em declínio”. (PEREIRA; CARVALHO, 2008, p. 46). E o contrato social, “[...] a metáfora fundadora da racionalidade social e política da modernidade ocidental” (SANTOS, 2002, p. 07) onde no modelo representativo “[...] a um número X de habitantes corresponde um número Y de representantes” (SANTOS, 2002, p. 09) é parte desta crise. O tipo dominante de contratualização atual é liberal e individualista, moldada da ideia de contrato de direito civil, entre indivíduos, e por isso difere da ideia moderna em que foi fundada a metáfora do contrato social, entre agregações coletivas de interesses sociais, fazendo com que esse tipo de contrato social dominante seja um falso contrato “[...] uma mera aparência de compromisso constituído por condições impostas sem discussão ao parceiro mais fraco no contrato, condições tão onerosas quanto inescapáveis” (SANTOS, 2002, p. 23).

            Um tipo de contrato que se configura pela enorme desigualdade de poder econômico entre as partes individuais do contrato e onde a parte mais forte tem um poder avassalador de impor sem discussão as condições que lhe são mais favoráveis, fazendo com que o contrato social dominante consista na “[...] predominância estrutural dos processos de exclusão sobre os processos de inclusão” (SANTOS, 2002, p. 23). E um tal crescimento estrutural da exclusão social configura uma crise de tipo paradigmático criando a necessidade de substituição do modelo de contrato que sustenta esse modelo de exclusão por um outro tipo de contrato menos vulnerável à proliferação da lógica da exclusão. O novo contrato deve, portanto, se opor a essa lógica da exclusão, a partir dos processos de participação.

A participação dos cidadãos no planejamento e na gestão das políticas públicas produz um espaço público onde os excluídos podem reivindicar seus direitos. Isso permite discutir a questão das prerrogativas, ou seja, daquilo que é necessário para que as populações historicamente prejudicadas, excluídas, demandem ações que as favoreçam efetivamente, tratando-as de forma desigual. Isso coloca o debate sobre o contrato social em um patamar bastante diferenciado das abordagens clássicas (PASE, 2008, p. 57).

            E vale ressaltar que esta ideia de oposição a uma lógica da exclusão serve como bandeira na busca de novas formas de organização social e política, como é o caso do Fórum Social Mundial (do qual Boaventura é um de seus idealizadores) que tem como lema: “um outro mundo é possível”. Novos e diferentes problemas sociais daqueles vivenciados pelos pensadores modernos estão em pauta criando a necessidade de novas regras, novas leis e quem sabe, até mesmo, uma nova ordem mundial.

            Um tal modelo de democracia representativa, liberal, excludente, conduz ao que Boaventura chama de fascismo societal: um tipo de fascismo que não é um regime político, mas um regime social e civilizacional. Um tipo de fascismo que promove o capitalismo através da democracia, que Boaventura divide em algumas formas fundamentais: o fascismo do apartheid social que promove a segregação urbana e exclusão social; o fascismo do Estado paralelo em que ao mesmo tempo onde o Estado age democraticamente, também pode agir de forma “predatória”; o fascismo para-estatal onde atores sociais poderosos, com a conivência do próprio Estado, neutralizam ou suplementam o controle social produzido pelo Estado; o fascismo populista que promove a idade de que tudo no capitalismo está ao alcance de todos, quando na verdade as formas de consumo e estilos de vida estão fora do alcance da maioria da população; o fascismo da insegurança que manipula grupos sociais vulneráveis pela precariedade do trabalho criando a disponibilidade para suportar a insegurança quanto ao presente e ao futuro; o fascismo financeiro, comandado pelos mercados financeiros manipulado por decisões de investidores cujo único desejo é rentabilizar seu capital, combinando com a lógica do lucro especulativa, suficientemente poderoso para abalar, em segundos, a economia real global e a estabilidade política de qualquer país.

            No modelo contratual vigente “[...] a democracia é parte do problema, e temos de reinventá-la se quisermos que seja parte da solução” (SANTOS, 2007, p. 90). Reinventar significa, entre outras coisas, transformar o modelo representativo do jogo democrático em um modelo participativo, em que o Estado se abra a presença permanente e diretiva da sociedade civil, “efetivando o controle do Estado pela sociedade” (STRECK, 2003, p. 64).

Os defensores da democracia participativa, grupo do qual Boaventura Santos é parte, sustentam que o real sentido da democracia foi esvaziado com o passar dos tempos, e foi reduzido ao simples modelo de seleção de representantes via voto, portanto, sem participação efetiva da sociedade civil organizada. Os defensores da democracia participativa advogam a necessidade de mecanismos de controle da sociedade civil sob os atos do governo, principalmente no que diz respeito à democracia para a esfera social, em que um bom exemplo seria o orçamento participativo (PEREIRA; CARVALHO, 2008, p. 50).

            O modelo contratual representativo se tornou ineficiente por vários motivos. Dentre suas patologias Boaventura aponta o fato de que os eleitores já não se sentem representados por seus representantes além de ser caracterizado pela ausência dos representados na coisa pública, ou seja, naturaliza a distância dos cidadãos em relação à política. E para que o modelo contratual participativo possa vigorar algumas condições básicas são essenciais, dentre elas: ter a sobrevivência garantida afinal, se estamos morrendo de fome a nossa primeira preocupação será individual e mais imediata; além da garantia da sobrevivência é preciso ter tempo disponível para participar (algo que só pode ser dado se a sobrevivência estiver garantida); além da garantida da liberdade e do acesso à informação.

            É preciso considerar também o papel que os movimentos sociais devem desempenhar neste tipo de contrato social, já que é através dos movimentos sociais que os cidadãos podem, de forma organizada, se articular em torno de objetivos comuns cobrando do Estado políticas públicas efetivas para a sociedade. “Através da organização da sociedade civil novas práticas democráticas se desenvolveram, preponderantemente as formas de participação direta nos processos de articulação, deliberação e definição de estratégias de ação” (PEREIRA; CARVALHO, 2008, p. 56).

            Mas neste novo contrato social não apenas os movimentos sociais assumem um papel preponderante como o próprio Estado assume as funções de um “movimento social”. Para Boaventura a construção de um novo contrato social passa pela transformação do modelo de Estado que deve ser entendido como “novíssimo movimento social” (2002, p. 59), no sentido de que sob a designação de Estado deve emergir uma nova forma de organização política para além do Estado, mas que tem o próprio Estado como articulador “[...] e que integra um conjunto híbrido de fluxos, redes e organizações em que se combinam e interpenetram elementos estatais e não estatais, nacionais e globais” (2002, p. 59). O Estado se transforma em algo além de uma materialidade institucional e burocrática criando um modelo de espaço público onde as forças democráticas centrem suas lutas por uma democracia redistributiva, tendo o Estado como coordenador das diferentes organizações, interesses e fluxos que irão emergir deste processo. Não se trata, portanto, de democratizar o monopólio regulador do Estado, mas de lutar pela perda desse monopólio, criando novas condições para atuação tanto de agentes privados, quanto de empresas, organizações não governamentais e movimentos sociais, cujos interesses são coordenados pelo Estado. Com efeito, “se estamos tentando fazer uma teoria política nova, uma democracia radical de alta intensidade, sabemos que isso será somente por meio da democratização de todos os espaços” (SANTOS, 2007, p. 62).

            Temos aqui, portanto, um novo contratualismo, baseado em processos democráticos participativos que estimula homens e mulheres a serem protagonistas da política e não objeto da política de Governantes mal intencionados: “[...] se trata de um meio de despertar e aprender cidadania exercendo-a, através de uma modalidade de consulta que permite romper com padrões históricos de nossa cultura clientelista e paternalista” (STRECK, 2003, p. 115). Um novo modelo de cidadania, construída “de baixo para cima” (CARVALHO, 2002), com a democratização das decisões (CORREA, 2000) de todos os espaços (SANTOS, 2002) e de bases mais plurais (PEREIRA NETO, 2003). Uma nova cultura política emancipatória que combate as diferentes formas de opressão, como o racismo, sexismo, a discriminação de castas, além de modelos econômicos como o capitalismo e visões de mundo como o colonialismo. Uma nova cultura política que garante o direito de cidadania a todos: homens, mulheres, brancos, negros e índios. E onde

O terceiro setor (associações, sindicatos, partidos políticos, organizações não-governamentais, etc.) terá participação estratégica na nova estrutura social, pois além de planejar, executar e fiscalizar projetos públicos e privados em âmbito social, será fundamental na construção de uma democracia de novo tipo, ou seja, a direta participação dos envolvidos nas questões que lhes dizem respeito (PEREIRA NETO, 2003, p. 57).

            No caso brasileiro é preciso considerar como a Constituição Federal de 1988 criou mecanismos para fortalecer a participação popular. A constituição brasileira não apenas impõe normas e princípios que devem ser seguidos tanto pela sociedade quanto por aqueles que a representam na esfera do poder executivo ou legislativo, como é o instrumento maior legitimador da participação popular. Formas de participação democrática que não excluem elementos de representação como é o caso dos Conselhos de Políticas Públicas e representação junto aos movimentos sociais, além de formas de participação como referendos, consultas populares e projetos de iniciativa popular, como disposto no art. 14º da carta magna (BRASIL, 2015). Desta forma o Estado Democrático de Direito brasileiro deve ter como pilar um novo modelo de Sociedade Democrática, com participação ativa e direta de cidadãos e cidadãs, comprometidos com o futuro do país. Uma nova conceituação de Estado que se restringe aos mecanismos da democracia representativa, mas sim “[...] amplia o espaço público de poder capaz de coordenar e conviver com a atuação e interesses das organizações não estatais na efetivação de uma democracia participativa que avança para além da ação dos agentes privados, com vistas a democratizar a própria atividade estatal” (ZENI; RECKZIEGEL, 2009, p. 9350).

 

O contrato pedagógico

            Ao relacionarmos o pensamento de autores tão distintos, como Boaventura de Sousa Santos e Danilo Streck, fomos movidos por uma questão que não aparece de forma enfática no conjunto da obra do sociólogo português e que deve ser complementada: a ideia de que, qualquer que seja o modelo de democracia e cidadania participativa, é preciso preparar o cidadão para atuar no espaço público, com conhecimento e habilidades técnicas e políticas. É preciso todo um esforço pedagógico de formação e “educação para a cidadania”, tal como previsto pelas leis e diretrizes de bases da educação brasileira. Um esforço pedagógico de formação e educação que Danilo Streck vai buscar entre os gregos antigos, a partir da concepção de paideia: “Talvez seja necessário recuperar na educação a idéia (sic) grega de paidéia que abrangia várias esferas da vida, considerando a pessoa integrada na sua polis. Ela não era uma dimensão a mais da vida, mas o fator estruturante da própria vida comunitária” (STRECK, 2003, p. 136). Além do mais, “A presença da pedagogia nos processos e movimentos sociais [...] é fundamental para a potencialização destas práticas como formadoras de cidadania” (STRECK, 2003, p. 135).

            É preciso não apenas reinventar a democracia, transformando-a em um movimento de baixa intensidade para uma participação ativa e efetiva dos cidadãos. É preciso reinventar a educação no sentido freireano[6], estimulando novas formas de participação, fazendo com que o homem seja “[...] ator transformador de sua própria história: na construção de sua práxis, na luta e no enfrentamento dos conflitos sociais, no engajamento que o impulsiona em suas conquistas a buscar um mundo melhor” (MEDEIROS, 2013, p. 129).

            Mudou-se o contexto das teorias contratualistas de Hobbes e Rousseau, novos problemas, novos desafios, mas não mudou a necessidade de educar os indivíduos para que exerçam seu papel de cidadão, e de forma autônoma, no sentido freireano, de educadores e educandos, transformando-os em sujeitos históricos.

A obra de Paulo Freire é um trabalho de conscientização, recomendado a todos os homens e mulheres preocupados com a sua existência e a todos os educadores. Sua obra apresenta um caráter político e social na medida em que, fazendo uma abordagem da educação enquanto instrumento de libertação de consciências e da necessidade da atuação do homem na sua própria existência, afirma não ser suficiente que o oprimido tenha consciência crítica da opressão, mas que se disponha a transformar a realidade (MEDEIROS, 2013, p. 135).

 

Referências Bibliográficas

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[1] Para mais detalhes sobre a ideia de contrato social como forma de opressão e dominação ver também a obra de Pateman escrita em colaboração com Mills: Contract and Domination (2007), onde os autores procuram “[...] abordar a intersecção dos contratos sexual e racial” (PATEMAN, 2011, p. 5).

[2] Para mais detalhes sobre a ideia de democracia em Rousseau, veja o texto em nosso website: A Democracia em Rousseau.

[3] O novo contrato deve ter como uma de suas características importantes, segundo Danilo Streck, conservar “um tom contestatório dentro da globalização econômica comandada por empresas transnacionais e os governos e Estados a elas relacionados (2003, p. 59-60). Um novo tipo de regulamentação das relações sociais se faz necessário pois “o atual contrato social é ineficaz para resolver os problemas de convivência entre os povos num mundo globalizado” (STRECK, 2003, p. 61). Sobre os problemas impostos pela globalização e a ideia de uma outra globalização possível ver por exemplo, a obra de Milton Santos (2000).

[4] Sobre a visão eurocêntrica do homem branco, “civilizado” e como essa visão foi influenciada através de relatos de viajantes, cronistas e historiadores do “novo mundo” veja o texto em nosso website: A concepção de um estado de natureza teria origem a partir das ideias dos povos ameríndios?.

[5] Uma versão original da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã pode ser encontrada no site da Biblioteca Nacional Francesa. Acessado em: 16/01/2015. Uma tradução pode ser obtida na Biblioteca da Revista Educação Pública da Fundação Cecierj. Acessado em 16/01/2015.

[6] Sobre Paulo Freire veja em nosso website a seção: Filosofia da Educação.

 

(Ciber)democraciaDemocracia Participativa → A Democracia Participativa como um novo modelo de Contrato Social

Veja Também:

 

1. Para uma análise mais aprofundada do conceito de democracia participativa e/ou deliberativa, veja a publicação da nossa Tese de Doutorado: Conselhos de Políticas Públicas, Política Deliberativa e Educação Popular