A obra Leviatã

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em nov. 2017

            A obra Leviatã, publicada em 1651 na Inglaterra é, talvez, a mais conhecida de Hobbes e, para muitos, considerada sua obra-prima: “consideramos esta obra o centro teórico da teoria política hobbesiana, uma vez que o Leviathan apresenta o pensamento hobbesiano de forma mais explícita e madura do que nas obras anteriores ou posteriores” (TELES, 2012, p. 67).

            O nome da obra, Leviatã, faz referência a um monstro marinho de que fala o livro de Jó na Bíblia: “Quem confia, se faz ilusões, pois já seu aspecto o derruba. Ninguém se atreve a provocá-lo. Quem lhe resistirá? Quem ousou desafiá-lo e ficou ileso? Ninguém debaixo do céu”. (Jó 41, 1-3). Hobbes usa a figura bíblica do Leviatã que representa um animal monstruoso mas que de certa forma defende os peixes menores de serem engolidos pelos mais fortes. Simbolicamente esta seria a figura que representa o Estado, o poder do Estado absoluto, simbolizado com inúmeras cabeças e empunhando os símbolos dos dois poderes: civil e religioso.

O ‘Leviathan’ “histórico” era um monstro grande e poderoso segundo o imaginário comum dos navegantes da idade média. Também foi descrito no Antigo Testamento, no livro de Jó, capítulo 41, como um demônio das águas. Em forma de serpente, polvo ou dragão, o monstro marinho era profundamente temido pelo homem, uma vez que se tratava de um demônio muito poderoso (TELES, 2012, p. 31-32).

            O Leviatã seria uma das criaturas mais temíveis e poderosas do mundo, que inspira medo e temor, e que seria uma metáfora do poder absoluto dos reis do início da Idade Moderna e da Monarquia como regime de governo que tudo controla e em todos os campos atua ou de um Estado que coloca-se acima dos indivíduos, embora represente-o e tenha sido criado pelo próprio homem. Ele se constitui como uma unidade formada por várias pessoas e sua vontade passa a ser a vontade de todos.

            Hobbes (2003, p. 11) chama esse Leviatã, ou República, ou Estado, de “homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado”. Esse homem artificial tem uma alma artificial que “dá vida e movimento ao corpo inteiro” e corresponde à soberania.

Hobbes emprega a imagem do monstro bíblico Leviatã para simbolizar um Estado poderoso capaz de promover a preservação da vida. A intenção de Hobbes é apropriar-se do temor que inspira o monstro bíblico para impor a obediência dos indivíduos ao Estado soberano (SEVERINO, 2014, p. 10).

            A imagem utilizada por Hobbes para representar o Estado na capa da obra Leviatã está impressa na edição de 1651. “O autor da ilustração foi Abraham Bosse, um célebre artista francês” (SEVERINO, 2014, p. 67). O filósofo faz uma clara divisão entre o poder religioso e o poder político, empunhando na mão esquerda um cetro episcopal posicionando o poder religioso do lado esquerdo da imagem e, na mão direita, empunhando uma espada, representando o poder político. Todavia, parece querer demonstrar que a Igreja e o Estado se fundem em um só corpo que é o do monarca, concentrando em si os poderes religiosos e político.  Sobre a ilustração da capa “Schmitt diz que se pode ver três imagens: o grande homem, o grande animal e um grande animal artificial” (TELES, 2012, p. 32). Uma quarta imagem também pode ser pensada como sendo o deus mortal (o contrato social):

O Leviathan representa a forma mortal de Deus, a forma coletiva de homem, a forma temida e protetora do animal e, finalmente, a forma eficiente da máquina. Em outros termos, o Leviathan, homem artificial que se assemelha ao poder divino é o que maquinalmente serve ao propósito pelo qual foi criado, isto é, garantir a vida política do homem. De fato, esta leitura de Schmitt da simbologia do termo Leviathan oferece uma possível e justa compreensão da dimensão imprimida por Hobbes ao Leviathan em sua obra. O Leviathan compõe e sustenta esta união de forças, de perfeição e/ou de caractéristicas que compreendem Deus, o homem, o animal e a máquina. O Estado absoluto é a personficação destas quatro potências (TELES, 2012, p. 33).

            Na parte superior da imagem está um homem com proporções de um gigante que abarca todo um território, que tem nas suas mãos o poder civil e religioso, com uma coroa e uma armadura. Essa armadura se assemelha à escamas como se o gigante fosse um monstro marinho. Todavia,

olhando mais atentamente, percebe-se que essa espécie de armadura é composta dos corpos dos indivíduos que compõem aquele Estado. Além disso, todos os indivíduos estão de costas com as cabeças inclinadas. Todos direcionam os olhares para o grande soberano, como se ele fosse um rei sol (SEVERINO, 2014, p. 67-68).

            Já na parte inferior aparecem novos símbolos representando o poder religioso e o poder político. Em oposição aparecem, respectivamente, à direita-à esquerda da imagem: castelo-igreja; coroa-mitra; armas de fogo-chifre e forcado (emblema do diabo); campo de batalha-tribunal eclesiástico.

            Hobbes afirma (2003, p. 12 – grifos no original) que para descrever a natureza deste homem artificial, ou seja, do Estado, ele irá examinar:

Primeiro a sua matéria e o seu artífice, que são, ambos, o homem. Segundo, como e por meio de que convenções é feito;  quais são os direitos e o justo poder ou autoridade de um soberano; e o que o preserva e o desagrega. Terceiro, o que é uma república cristã. Quarto, o que é o Reino das Trevas.

            A obra se divide, portanto, em quatro partes; 1: Do Homem; 2: Da República (na tradução da editora Martins Fontes e também na versão francesa Les classiques des sciences sociales) ou Do Estado (na tradução da Coleção Os Pensadores); 3: Da República Cristã (na tradução da editora Martins Fontes e também na versão francesa Les classiques des sciences sociales) ou Do Estado Cristão (na tradução da Coleção Os Pensadores); 4: Do reino das trevas.

            Ao longo das quatro partes da obra estão os conceitos centrais da teoria social hobbesiana e sua teoria política com fundamento no contrato social. Hobbes defende o absolutismo político não teológico, ou seja, o poder centralizado na pessoa do soberano, embora também discuta que esse poder possa estar centralizado em torno de uma assembleia. Hobbes defende a monarquia justificando a necessidade de se criar um Estado forte, capaz de colocar a ordem e trazer segurança à vida dos indivíduos em sociedade.

            A primeira parte é bastante ampla (aliás, o livro em si é bem amplo) e trata de diversos elementos que dizem respeito ao homem: a linguagem, vícios e virtudes, costumes, leis naturais, liberdade, e muitos outros. Hobbes (2003, p. 12-13 – grifos no original) sugere a necessidade de aprender a “ler a natureza humana”: lê-te a ti mesmo e

graças à semelhança de pensamentos e paixões de um homem para com os pensamentos e paixões de outro, quem olhar para dentro de si mesmo e considerar o que faz quando pensa, opina, raciocina, tem esperança e medo, etc., e por quais motivos o faz, poderá por esse meio ler e conhecer quais os pensamentos e as paixões de todos os outros homens, em circunstâncias idênticas.

            E aquele que pretende governar um Estado ou uma nação inteira “deve ler, em si mesmo, não este ou aquele indivíduo em particular, mas o gênero humano. Embora fazer isso seja difícil, mais ainda do que aprender qualquer língua ou qualquer ciência” (HOBBES, 2003, p. 13).

            Nesta primeira parte encontramos uma bem elaborada teoria da natureza humana e, por conseguinte, das paixões humanas. “Hobbes parte do pressuposto de que, no estado de natureza, os homens são extremamente egoístas, com o intuito de ressaltar a necessidade de se instaurar um poder para disciplinar as paixões humanas” (SEVERINO, 2014, p. 26). Ao destacar a natureza das paixões humanas Hobbes ressalta a natureza egoísta dos indivíduos, em que cada um está preocupado com sua própria sobrevivência e, por conseguinte, com seus próprios interesses. De onde surge a necessidade de um poder comum capaz de impor uma certa ordem, já que os homens, entregues a si mesmos, viveriam em um perene estado de guerra de todos contra todos (Bellum omnia omnes ou Bellum omnium contra omnes), sob o domínio de suas paixões.

            A solução é um pacto, um contrato, um acordo comum entre os homens, que dá origem ao homem artificial, o Estado, a República ou o Leviatã e corresponde a segunda parte do livro.

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            Na definição de Hobbes (2003, p. 115), a “transferência mútua de direitos é aquilo a que se chama CONTRATO”. Através desse contrato, os homens se comprometem mutuamente e submetem suas vontades à vontade de um soberano que passa a ter poderes de decisão acerca dos assuntos de interesse comum.

            Surge o Estado, esse Leviatã, para colocar fim ao estado de guerra de todos contra todos e, através da força, prover a manutenção da ordem social. A figura do Leviatã, o monstro bíblico, se justifica para Hobbes, pois a única forma de pôr um freio às paixões humanas é através do medo, e nada mais aterrador do que a figura de um monstro colossal: “os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém” (HOBBES, 2003, p. 143). Só o medo da punição pode impedir a desobediência do acordo estabelecido que, no Estado, se transformam em leis.

O Estado hobbesiano seria marcado pelo medo, sendo o próprio Leviatã um monstro cuja armadura é constituída de escamas, as quais remetem ao mito do monstro marinho, que tem a forma de seus súditos, brandindo ameaçadora espada, governando de forma soberana por meio deste temor que inflinge aos súditos (SEVERINO, 2014, p. 33).

            Já na terceira parte do Leviatã, o autor disserta sobre o que ele chamou de a Sociedade Cristã, onde analisa a vida eterna, a salvação, o inferno, o poder eclesiástico, os direitos do reino de Deus.

            Na última parte, sobre o Reino das Trevas, o autor acaba por finalizar a sua obra com uma crítica sobre como se interpretava as sagradas escrituras.

 

Referências

HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de uma república eclesiástica civil. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

SEVERINO, Marcina de Barros. Leviatã hobbesiano: a força do símbolo. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião). Departamento de Filosofia e Teologia. Universidade Católica de Goiás. Goiânia, 2014.

TELES, Idete. O Contrato Social de Thomas Hobbes: alcances e limites. Tese (Doutorado em Filosofia), Programa de Pós-Gradução em Filosofia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.

 

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De acordo com Teles (2012, p. 32), o nome Leviatã aparece apenas quatro vezes na obra (na edição inglesa de Edwin Carley, 1994): “na introdução, página 03, no capítulo XVII, página 109, e duas vezes no capítulo XXVIII, página 210”.