Andreas von Richthofen e a misericórdia seletiva

por Liziê Moz Correia

postado em set. 2016



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por Liziê Moz Correia

postado em jun. 2017

                Recentemente, o prefeito de São Paulo, João Doria, anunciou que seria desarticulada pela prefeitura, em ação conjunta com o governo do Estado, a região da capital paulista conhecida como “Cracolândia”. Diante disso, grande parte da opinião pública voltou seu olhar aos farrapos de gente que ali viviam, os trapos humanos que perderam a dignidade, a identidade e estavam em vias de perder a vida. A reação comum, porém, era a de desprezo, verdadeira repulsa por aquelas pessoas que, mais semelhantes a zumbis, “infestavam” a cidade com a sua miséria e a sua imagem nefasta, cometiam delitos para sustentar o vício e deixavam-se estar ali, sem perspectivas, pesos mortos na sociedade. Entretanto, de súbito, vimos a reação das pessoas saudáveis e ativas mudar, graças à nobre presença de um usuário ilustre na região: o irmão de Suzane von Richthofen.

                O rapaz, de 29 anos, doutor em Química pela USP, filho de uma das mais abastadas e tradicionais famílias paulistanas, herdeiro de um patrimônio considerável, também sucumbiu diante das agruras da vida e procurou refúgio na fuga da realidade, proporcionada pela droga. É inegável que tudo o que foi vivido por Andreas ainda na adolescência, aos 15 anos, tornou-se um fardo maior do que as suas forças poderiam suportar. A perda de ambos os pais, assassinados pela irmã, que lhe era tão querida, o circo midiático que se armou em torno do episódio, as disputas familiares posteriores, a solidão que assola... A isso, some-se o fato de que nós, adultos, nem sempre conseguimos lidar com as nossas perdas e frustrações sem nos rendermos ao desespero e ao desalento, ainda que recebamos apoio de diversas fontes – como esperar que Andreas, praticamente uma criança, já destituído da família, pudesse ter a estrutura emocional necessária para seguir em frente? Todos, sem exceção, nos apiedamos dele.

                Todavia, o fato que salta aos olhos é outro: por que apenas Andreas é digno de nossa compaixão? Por trás dessa “misericórdia seletiva”, parece haver dois aspectos importantes: a empatia e a crença na escolha individual, que, a depender do “circunstancialismo concreto”, fica suspensa, em favor de quem nos é mais simpático. Explica-se. Acompanha o rapaz loiro, bonito, bem nascido e bem aquinhoado, uma certa aura, atribuída pelos anseios de todos nós e pelas expectativas sociais sobre ele. A maioria de nós gostaria de ter tido as oportunidades que Andreas teve, ao nascer, e esperamos dele o melhor: a graduação, o mestrado, o doutorado, os elevados cargos, o patrimônio, o sucesso, a cidadania da mais elevada estirpe. Por isso, lamentamos a sua decadência, a sua debilidade, a sua doença. Quando nos inteiramos de sua história, conseguimos ter a empatia necessária para afirmarmos: “No lugar dele, poderia ser eu; eu poderia estar lá, fazendo o mesmo”. Outrossim, o mesmo não ocorre com os demais viciados em crack que vemos todos os dias. Ninguém jamais quis ter nascido nas circunstâncias e no local onde eles nasceram. Esquecidos num cruel anonimato, esses jovens não recebem mais do que o asco de uma sociedade que não se identifica com eles. Por trás de cada um, porém, também há uma história, tão trágica, tão cruel, tão perversa e cheia de sordidez quanto a do irmão de Suzane. Afinal, longe de terem o monopólio do sofrimento humano, os mais favorecidos são mais belos e mais asseados, mas também são gente: assim como os usuários que jamais tiveram uma família ou que a perderam ainda no início da vida, que jamais conheceram o pai ou foram por ele violentados, Andreas sucumbiu. Assim como os usuários que tiveram mães cansadas, esgotadas, desmazeladas pelas dores da vida, Andreas tentou abandonar o vício, mas fracassou. Assim como os viciados que sempre conheceram, da vida, as misérias, as escassezes de todas as sortes, a precariedade dos serviços públicos, a fome e o frio, Andreas não era feliz e decidiu fugir. Na Cracolândia, todos são jovens vulneráveis, desorientados, que apanharam demais nas ruas e na vida. Em certa medida, todos são Andreas. O problema é que, bem... Nem todos são Andreas Albert von Richthofen.  Ele não teve escolha, não estava lá porque queria, diz-se; os outros, sim, tiveram. Os demais poderiam ter tomado outro rumo na vida, e dizer o contrário é criar “vítimas da sociedade”, aduz-se. Sem problemas. Apenas, registre-se que há algo de assustador em tamanha ausência de critérios que possam valer para todos – todos são vítimas ou todos são culpados?

                Depreende-se, assim, que, em nossa sociedade, há quem nasça tão vitorioso, porque a fortuna lhe ofereceu berço mais cômodo, que, por mais que a vida, mais tarde, se lhe mostre adversa, por mais que se dedique a destruir a sua própria existência, parece que sempre lhe será dada uma segunda, uma terceira, uma enésima chance – quantas bastem! – para se reabilitar. Há, porém, quem tenha nascido tão desgraçado, mas tão perdedor, que já está condenado de antemão; nasceu em berço frio e pode morrer ao relento, porque escolheu mal, desperdiçou a sua oportunidade - a que lhe disseram que teve. Reduzindo as proposições a termos mais simples, poder-se-ia dizer o seguinte: ao vencido, o ódio ou nada, nem mesmo a compaixão cristã; ao vencedor, se não os louros, ao menos as batatas.

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