Arte, Direito Penal e moralismo
No filme Intocáveis (2012) há uma cena genial sobre o significado da arte, quando os personagens refletem a respeito de uma obra exposta. De fato, a obra é um borrão, conforme destaca o personagem de Omar Sy, “parece que alguém levou um soco no nariz e espalhou sangue no quadro. ”
Arte é discutível porque é um produto intelectual e de inspiração que envolve gostos e paixões. Ouvir a Terceira sinfonia de Rachmaninov possui um significado que pode ser interpretado pelas predileções das pessoas a esse estilo musical, da mesma forma que, ouvir Funk e Rap possui aderência aos seus adeptos.
O que se discute aqui é o gosto, uma vez que tanto o artista clássico quanto os músicos de funk e rap possuem sua audiência certa e fiel, produzindo o pensamento e conhecimento de uma parte da história humana.
Entretanto, programas, shows musicais, novelas e reality shows são interpretados hoje como a arte do tempo hodierno do homem, que em sua hipocrisia, aceita as condições impostas pela mídia para ganhar cada vez mais audiência, em busca do capital.
A arte de mostrar o espetáculo e selecionar o que deve ser exibido parte de uma padronização do homem expectador, que exerce agora sua característica mais vil: transforma-se no homo videns, apenas entende o que lhe é mostrado pelos meios de comunicação e cessa a sua atividade mais criativa: a crítica (SARTORI).
Em meados dos anos 90 o programa do Gugu ganhava audiência com a banheira do Gugu, famosa por conter inúmeras modelos que interpretavam bem o seu papel: serviam como ancoras para a audiência, utilizando seus belos corpos vestidos em pedaços mínimos de roupa de praia, mostrando muitas vezes mais do que deveria exibir. O horário para tal programa era o nobre; as 16 horas de domingo. Arte do entretenimento!
É fato conhecido que as novelas traduzem a predileção pelo consumo do rápido orgasmo; do expedito arrepio que se sente quando a farsa é desvendada, da alegria instantânea que morre ao fim do capítulo e retorna no dia seguinte. Todavia, as últimas novelas nacionais mostram, em horário nobre, situações interessantes, como traição, consumo de drogas, assassinatos e sexo. Arte para o homo videns!!
Mas não é moralismo entender que poupar determinadas faixas etárias ou determinado público às amostras de arte comum das Tvs relaciona-se com o certo e com o errado. Está mais interligado aos gostos e predileções das famílias e pessoas que buscam, em um mundo de informações dinâmicas, aquilo realmente entendem como arte ou como entretenimento.
Mesmo assim, não é falso moralismo entender que crianças ou menores não precisam ser expostas a determinados estilos de arte.
Seria improvável, em qualquer creche em qualquer lugar encontrar a obra de Goya, Saturno devorando seus filhos. Da mesma forma que, há lugar e hora para determinadas obras de arte, há também tempo e experiência para aplaudi-las e entende-las.
Não significa impor limites morais, mas sim em destacar que aquela arte não representa o que, subjetivamente, algumas pessoas consideram arte. Certamente as crianças na creche não considerariam.
Veja o exemplo do filme e do personagem Dris de Omar Sy que até hoje não entenderia a arte do borrão e continuaria sem confirmar que qualquer traço daquele quadro é arte.
Todavia, encher uma banheira com mulheres seminuas em horário nobre na TV ou novelas que mostram bem mais que deveriam, é definir duas discussões relevantes: a primeira condiz com o corpo feminino e o uso de suas formas para atrair e conquistar; como propagandas de ferraris vermelhas, tudo é consumo, mesmo aquele corpo exposto ali demonstra que programas nacionais acreditam que o sexo também pode ser comprado, que o objeto “corpo feminino” está ali a poucos milímetros, é tratar a pessoa feminina como simples objeto para um determinado fim (KANT).
A segunda discussão é mais cultural que sociológica e diz respeito ao que se deseja enquanto consumidor de cultura; claro que o entretenimento se difere de ensinamento, mas entreter também é responsabilidade social quando programas de TV entram em todas as casas de todo lugar, como os reality show. Mas mesmo assim, não é lugar para o direito penal.
O Tríptico das vaidades terrestres e da salvação divina, de Hans Memling, de 1845, nunca será visto em templos, igrejas e comunidades religiosas, pois não pertence a esse local uma vez que evoca inúmeras interpretações à mente de seus expectadores. Da mesma forma que, não é a moralidade ou imoralidade que se discute, mas o que quer que seus adeptos vejam e interpretem, o que ainda assim é arte e cultura.
Pais não deixariam seus filhos lerem Decamerão de Bocaccio, na infância ou assistir programas violentos ou impróprios à idade, que passam no meio das tardes e ainda assim, nada tem com a moral, mas sim, nas escolhas de cada um segundo suas próprias vontades, há o tempo certo para a apreciação de determinadas obras de arte.
O que se discute é o gosto das obras de arte, como na exposição do Banco Santander, obras de duvidosa técnica artística ou de péssima habilidade de seu compositor.
Não se pode identificar fatos que façam valer o direito penal e suas penalidades em exposição que contenha uma técnica artística terrível, mas se espera mais do ser humano enquanto artista da vida.
Como no funk e na música clássica, o gosto ou desgosto, a beleza interpretada pela estética; o que é feio e o que é bonito; os pomposos quadros de uma imponência surreal e os rupestres desenhos nas cavernas dos homens de milhares de anos atrás. Tudo é definido como arte; mas se pode enfim escolher qual arte deseja para si mesmo.
Que os consumidores da banheira do Gugu dos anos 90 ou os expectadores das novelas globais não usem do moralismo para engendrar o direito penal em meio às exposições, que, no máximo, podem ser infelizes e de um gosto discutível. O máximo que podem fazer é manter distância
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texto publicado originalmente através do Canal Ciências Criminais
por Iverson Kech Ferreira