Educação e Cidadania em Rousseau

por Alexsandro M. Medeiros

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           A compreensão de que o processo de formação dos indivíduos está diretamente ligada com a política remonta à Platão. E Rousseau expressa essa ideia ao prestar reverência à República como o melhor tratado de educação: “Voulez-vous prendre une idée de lʼéducation publique, lisez la République de Platon. Ce nʼest point un ouvrage de politique, comme le pensent ceux qui ne jugent des livres que par leurs titres: cʼest le plus beau traité dʼéducation quʼon ait jamais fait” (ROUSSEAU, 2012, p. 07)[1]. Platão e Rousseau se destacam na história da filosofia ocidental por causa de um minucioso projeto pedagógico estreitamente associado a um projeto político[2].

            A importância do processo pedagógico na formação dos indivíduos (e consequentemente do cidadão) é revelada quando Rousseau afirma, por exemplo:

Nous naissons faibles, nous avons besoin de force; nous naissons dépourvus de tout, nous avons besoin dʼassistance; nous naissons stupides, nous avons besoin de jugement. Tout ce que nous nʼavons pas à notre naissance et dont nous avons besoin étant grands, nous est donné par lʼéducation (ROUSSEAU, 2012, p. 04)[3].

            Além disso, “a relação entre educação e política fica explícita se lembrarmos que Rousseau queria publicar o Emílio e o Contrato Social ao mesmo tempo” (SILVA, 2008, p. 45).

            Em Rousseau, como para os filósofos gregos antigos, a filosofia da educação e a filosofia política vêm sempre entrelaçadas. “Rousseau elabora o Contrato Social junto com o Emílio, um gesto pelo qual revela ser impossível pensar na formação do ser humano sem pensar a própria sociedade” (STRECK, 2003, p. 70). Por isso, somente à luz da filosofia da educação de Rousseau, espalhada em algumas obras, concentrada no Emílio, é que podemos aclarar o seu ideal de cidadania.

Emílio, o educando fictício de Rousseau, encarna o cidadão ideal para viver dentro do contrato social por ele proposto [...] Emílio é criado sozinho, e a primeira e maior preocupação do tutor deve ser a de não interferir no seu desenvolvimento natural. Isso, no entanto, não quer dizer que seu destino final seja, como o de Robinson Crusoé, a solidão de uma ilha. O ideal de sociedade que Rousseau preconiza é aquela onde os cidadãos conseguem ter uma participação direta na vida da comunidade (STRECK, 2003, p. 75).

            O Emílio é um verdadeiro tratado educacional, “o Emílio é, na verdade, uma profunda teoria do fenômeno educativo e uma respeitável filosofia da educação” (PAIVA, 2007, p. 80), não apenas do ponto de vista do indivíduo, mas de formação do cidadão, do homem civil e político por excelência. O “Emílio propõe formar um tipo próprio de cidadão cuja especificidade é a de ser um cidadão legítimo tanto de uma sociedade perfeita, idêntica à que concebe no Contrato Social, como de uma mais real, cheia de imperfeições” (PAIVA, 2007, p. 80). “Emílio personifica a figura do cidadão rousseauniano. A construção do contrato social verdadeiro dependerá de quantos emílios se tiver educado” (CORRÊA, 1997, p. 173). E apesar de dever ser considerado a partir da época em que foi escrito, tem contribuições relevantes para se pensar a formação do cidadão na atualidade.

            Rousseau tem consciência das diferenças entre as sociedades antigas e as modernas, seja quanto ao funcionamento da Democracia antiga, seja quanto aos hábitos de vida. Sabe que falta no seu tempo o ócio, que a cidade antiga garantia ao cidadão explorando o trabalho escravo, e que o envolvimento excessivo do indivíduo com seus interesses particulares afasta-o da participação direta e contínua na vida pública.

            Ao defender a ideia de uma democracia direta (como no modelo antigo) ao invés de um modelo Representativo, o modelo rousseauniano pressupõe uma Participação direta de todos os cidadãos nas decisões do governo (Veja em nosso website o texto que fala sobre A Democracia em Rousseau e o texto que trata das diferenças entre Locke e Rousseau: Democracia representativa e democracia participativa em Locke e Rousseau). E que essa participação popular pode e deve ser incentivada através da educação, pois é preciso educar os cidadãos para que estes estejam aptos a participar das decisões no exercício do poder, além de proporcionar ao cidadão uma visão mais clara do funcionamento do governo e exigindo dele maior consciência dos problemas do Estado. Nesse sentido, podemos dizer que a educação, aliada aos princípios de liberdade, igualdade, virtude, cidadania (entre outros) contribuem para a construção de uma república. Um Estado em que impere a liberdade e a igualdade é construído por cidadãos e estes, no entender de Rousseau, adquirem tais características, entre outros meios, pela educação e sendo virtuosos[4].

            Para que se possa pensar a educação voltada para a cidadania é preciso considerar o pensamento político de Rousseau e tê-lo como um referencial no que diz respeito à formação do cidadão. Postulando que o homem, degradado em sua natureza pelo processo histórico de socialização, pode, em princípio, recuperar sua integridade essencial, Rousseau desenvolve algumas ideias sobre educação que traz implícita uma teoria normativa do homem e da sociedade, coroada, na sua inspiração, por um autêntico projeto de cidadania.

            Consideremos a “boa sociedade” ou um Contrato social legítimo/ideal (Para entender melhor o Contrato Social veja em nosso website o texto Comentários ao Contrato Social de Rousseau). Sua legitimidade assenta no fato de que a organização do corpo político deverá ser dirigida por leis diretamente votadas pelos associados, por ato indelegável de vontade, que legitima o pacto social. Esse contrato preconizado por Rousseau é algo a ser construído, mas o filósofo tem consciência de que essa construção não pode dar-se pelo homem desfigurado pelo contrato demagógico.

Segundo Rousseau, a origem das sociedades políticas, do primeiro contrato, foi do interesse dos ricos. Somente eles tinham do que se preocupar. No estado de guerra, o risco de perda das provisões acumuladas era só deles, uma vez que os pobres tinham apenas a vida a perder, a qual já esvaía-se pela fome. [...] Assim, o pobre defende o rico de roubos de terceiros, não contratantes ou descumpridores do contrato, esperando atitude igual em caso de passar pelo mesmo infortúnio. Mas em que possibilidades o pobre sofrerá tal circunstância se nada tem? Rousseau, dessa maneira, mostra o quanto este contrato é demagógico (CORRÊA, 1997, p. 169).

            Se o contrato é algo a ser construído, pois o originário não é legítimo, se compreende, dessa maneira, o papel que a educação desempenha nesse processo. E o Emílio

expõe sobre as possibilidades de conservação do que restara do homem natural no indivíduo educado desde a tenra idade [...] Emílio aprenderá, sempre a partir de si, direitos e deveres. Verá que tudo a seu redor pode se resolver por meio de contratos, o que torna os sujeitos co-responsáveis. A educação contratual o impede de se sobrepujar, bem como de usurpar de seus semelhantes. Emílio torna-se um homem preocupado com a realização de sua felicidade, mas sem que o preço seja a infelicidade dos demais. Ao contrário, compraz-se com o bem alheio (CORRÊA, 1997, p. 173).

            Um povo apto a construir um contrato legítimo e a ratificar e respeitar suas leis é o resultado de um contínuo trabalho de conscientização. Este trabalho é realizado por meio da figura do legislador-pedagogo (ULHÔA, 1996): aquele que prepara o povo para exercer sua soberania e respeitar suas leis[5]. Educar para a cidadania envolve o papel de educadores e legisladores que tenham condições de realizar este mister pois, como afirma Rousseau: “antes de ousar empreender a formação de um homem, é preciso ter-se feito homem; é preciso ter em si o exemplo que se deve propor” (apud SILVA, 2008, p. 56). Antes de ensinar a ser cidadão é preciso ser cidadão.

            Constitui igualmente tarefa pedagógica gestar no indivíduo o espírito social e, com ele, um sentimento único: o de ser parte do corpo político, e isto desde cedo, considerando sua individualidade pelas suas relações com o corpo do Estado e perceber sua existência como parte deste corpo.  Ser social, então, vai ser mais do que fazer parte ou tomar parte: será não algo passageiro, mas um estado de alma permanente, pelo qual o cidadão  mostra não apenas conhecer o que é o bem, mas também amá-lo.

            Considerado em si próprio, o homem é um ser natural, completo; em sua relação com os outros, deixa essa condição para tornar-se um ser social, que se completa apenas à medida que se compõe com os outros homens, na qualidade, agora, de parte de um todo que o ultrapassa, a sociedade política, numa vida artificialmente organizada. Ser parte de um todo - eis a nova condição do homem desnaturado.

            Rousseau deseja uma integração radical entre o indivíduo e o Estado. Uma harmônica coordenação entre o “eu” e o “nós”. E é tarefa precípua da educação pública gestar em cada um a espontânea adesão ao espírito coletivo. É preciso formar no homem o cidadão o sentimento de ser parte do Estado e da educação. Pois cada associado exerce dois papéis, como homem e como cidadão. O mesmo indivíduo que faz a lei no exercício da cidadania, cumpre-a na qualidade de súdito, pois foi ele próprio que a estabeleceu. Isto não quer dizer que o indivíduo desaparece na figura do cidadão:

O individualismo rousseauniano é sui generis, pois não desaparece na dimensão social, mas estabelece um espaço de coexistência com os princípios coletivos. A civilidade resulta, portanto, da ação pedagógica de desenvolver as individualidades em todo seu potencial humano, criando paulatinamente teias de interdependência cuja reciprocidade moral acabe gerando um ambiente propício ao pleno desenvolvimento da cidadania (PAIVA, 2007, p. 81).

            Ser cidadão é, para Rousseau, ter direitos civis mas também direitos individuais. Direito à vida, à liberdade (individual e civil), tanto quanto à igualdade.

Emílio representa a formação do homem moderno, da forma como Rousseau o concebe, isto é, um homem livre mas zeloso de seus deveres para com sua espécie. Seu espécime pode analisar todas as formas de governo, a maneira como se organizam os estados e se dar ao luxo de escolher um dentre esses para viver. Melhor do que isso, o homem moderno é capaz de recriar essas formas e dar um novo modelo à sociedade, seguindo o contrato social ou a voz da própria consciência (PAIVA, 2007, p. 89)

            O indivíduo é uma “unidade fracionária” cujo valor só pode ser avaliado na relação com o todo, ou seja, o corpo social ou corpo político: “Comme la nature donne à chaque homme un pouvoir absolu sur tous ses membres, le pacte social donne au Corps politique un pouvoir absolu sur tous les siens, et cʼest ce même pouvoir, qui, dirigé par la volonté générale porte, comme jʼai dit, le nom de souveraineté” (ROUSSEAU, 20120, p. 108)[6]. Por isso, ao viver em sociedade, cada homem deve abrir mão de seus interesses particulares, uma vez que ele já não é mais apenas uma “unidade particular”, mas uma “unidade de um todo”, “seus interesses particulares estarão submetidos aos interesses de todos, representados pela vontade geral e, em contrapartida, todos terão direitos iguais dentro dessa coletividade, que é a sociedade civil” (SILVA, 2008, p. 41). E é o contrato social que “fundamenta o corpo político, considerando que a partir de seu estabelecimento, o homem, no caso enquanto cidadão, é uma parte que constitui o todo, que é a associação política” (SILVA, 2008, p. 40).

Par le pacte social nous avons donné lʼexistence et la vie au Corps politique: il sʼagit maintenant de lui donner le mouvement et la volonté par la législation. Car lʼacte primitif par lequel ce Corps se forme et sʼunit, ne détermine rien encore de ce quʼil doit faire pour se conserver (ROUSSEAU, 2012, p. 112)[7].

Considerações Finais

            Pensar em política é pensar em cidadania. Nas relações políticas ondem existem uma espécie de contrato entre o Estado e os cidadãos. Ao elaborar seu pensamento, Rousseau considera não apenas os princípios de um novo plano de formação política (soberania popular), um novo contrato, diferente daquele que deu origem à sociedade civil, mas também aponta alguns princípios de como desenvolver o que se espera de uma educação para a cidadania, para a formação do homem e do cidadão, uma formação política e moral de seus educandos voltados para o bem estar coletivo pois, como afirma Rousseau, “quem quiser tratar separadamente a política e moral nada entenderá de nenhuma das duas” (apud SILVA, 2008, p. 57). Rousseau percebeu a aproximação de ambos e o quanto, na sociedade de seu tempo, um e outro estavam separados, e, muitas vezes, em relação de conflito. Educar para a cidadania em Rousseau consiste, em última instância, educar para a participação dos indivíduos na vida em sociedade e em sua organização. Ademais, não basta dizer aos cidadãos “sêde bons: é preciso ensiná-los a ser”. Para transformar o homem natural em homem civil sem degradá-lo, Rousseau conta com as  boas instituições e confia ao poder da educação a disciplina das paixões, que não pretende eliminar, pois sabe que o  homem está sujeito a elas e, sem elas, seria um bruto ou um Deus.

 

Referências Bibliográficas

CORRÊA, Euclides Paradeda. Homem e cidadão em Rousseau. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 7 (26), p. 163-174, 1997.

MORAIS, Emília Maria de Mendonça. Educação e Política: uma re-leitura de Rousseau. Rev. Fac. Educação, São Paulo, n, 12, p. 199-215, jan/dez 1986.

PAIVA, Wilson Alves de. Homem e cidadão na obra pedagógica de Rousseau. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 17, n. 1/2, p. 77-92, jan/fev 2007.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emile ou de l'éducation. In: Collection complète des oeuvres, Genève, 1780-1789, vol. 4, tome premier. Édition en ligne www.rousseauonline.ch/, version du 7 octobre 2012. Acessado em 30/10/2014.

SILVA, Fabiele Aparecida Trujillo da. Rousseau e a educação do adolescente para a cidadania - contrapontos com a atualidade. Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação. Universidade de São Paulo, 2008.

STRECK, Danilo R. Educação para um novo contrato social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

ULHÔA, J. P. Rousseau e a utopia da soberania popular. Goiânia: editora da UFG, 1996.



[1] “Se quiserdes ter uma ideia de educação pública, lede a República de Platão. Não é uma obra política, como pensam os que só julgam os livros pelo título: é o mais belo tratado de educação jamais escrito”

[2] Para maiores detalhes sobre a relação entre educação, política e ética em Platão, veja em nosso website o texto: Projeto Ético-Político-Pedagógico na República de Platão. Na realidade, segundo Wilson de Paiva, em Rousseau não apenas a pedagogia e a política, mas a própria moral e a filosofia da religião “se interpenetram e não são mais que o desenvolvimento e a aplicação de um só e mesmo princípio” (2007, p. 81). Além disso, a importância de considerar o pensamento de Rousseau para todos os que lidam com a educação se deve ao fato de que, como afirma Emília Morais, ele foi o mais importante dos grandes filósofos da modernidade “a construir um pensamento em que a educação vem ocupar um lugar central de reflexão” (1986, p. 199).

[3] “Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos carentes de tudo, precisamos de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos quando grandes nos é dado pela educação”.

[4] Embora não seja o nosso principal objetivo neste texto relacionar a questão da cidadania e os valores morais, não podemos deixar de mencionar que Rousseau sente a necessidade de introduzir a virtude dos cidadãos como componente ideal de uma sociedade pós-pacto (para maiores detalhes ver Os Contratualistas). Em  algum momento da transição do estado natural para o estado social deu-se um desastre ôntico. O sentimento de piedade, de que o homem naturalmente é dotado, é que permite a boa socialização. Ora, no processo de transposição de um estado para outro, esse sentimento deu lugar ao amor de si. Além disso, a questão moral na formação do cidadão deve pretender, inclusive, que “Emílio tenha um caráter bom o suficiente para que, mesmo frente à corrupção, jamais se deixe levar pelos vícios e inclinações impróprios para o perfil de um cidadão” (SILVA, 2008, p. 39).

[5] No Contrato Social,  Rousseau distingue  a tarefa de redigir as leis do direito de as votar, sendo a primeira tarefa do Legislador e a segunda exercida diretamente pelo povo em assembleia, em condições de igualdade radical.

[6] Como a natureza dá a cada homem um poder absoluto sobre todos os seus membros, o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral leva, como já disse, o nome da soberania

[7] Pelo pacto social nós demos existência e vida ao Corpo político: trata-se agora de lhe dar o movimento e a vontade pela lei. Porque o ato original pelo qual este Corpo se formou e se uniu não determinou nada ainda do que ele deve fazer para se conservar

 

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