Ideologia como falsa consciência da realidade: Hegel, Feuerbach e Marx

            No texto do livro “A Razão Cativa”, Rouanet analisa as várias formas de compreensão de falsa consciência. Seja na história com Hegel (capítulo 4), na vida material com Feuerbach (capítulo 5), ou na sociedade com Marx (capítulo 6), o autor nos convida, através de suas exposições, a uma longa reflexão que nos dá, inclusive, a chave para compreender um pouco este momento tão grave pela qual passa nossa sociedade. As diversas escolas filosóficas têm procurado conhecer o homem, interpretar o mundo e a vida social que nos cerca. Passemos, com o autor, a visão hegeliana, feuerbachiana e marxista dessa mesma realidade.

            Para Hegel, todos os conflitos filosóficos registrados pela história da humanidade, mais não são do que a história do Espírito ou da razão buscando conhecer-se a si mesma.

            Esses conflitos são um processo necessário para esse “autodescobrimento” do Espírito. Rouanet cita a crítica que Hegel faz em relação ao Iluminismo e a fé religiosa: “O iluminismo, tão preocupado em dissolver a ilusão, está ele próprio mergulhado numa ilusão” (p. 66).

            Todos estes movimentos representam o movimento do Espírito, tentando superar as ilusões que se interiorizaram em si mesmo.

            “A luta entre a fé e o Iluminismo é uma luta entre irmãos inimigos” (p. 66). Ambas são protagonistas inconscientes da realidade. Ambas são momentos na trajetória do Espírito tentando superar-se. São duas faces de uma única verdade. “A crítica Iluminista do erro, verdadeira enquanto momento de um processo histórico cujo telos é o fim da diáspora do Espírito, é falsa na medida em que percebe ser adversário como seu Outro, sem se reconhecer nele” (p. 67).

            Verdade e falsidade são etapas necessárias enquanto o Espírito não atinge o seu fim.

            A crítica hegeliana do Iluminismo, prossegue Rouanet, pode ser aplicada em todas as outras formas de consciência da realidade. Essa consciência é verdadeira quando conhece, dentro dos limites de sua capacidade cognitiva num dado momento histórico, a realidade e a si mesma; é falsa quando crer estar na posse da verdade, isto é, quando não percebe que esse conhecimento é apenas parcial. A verdade está no processo e não em cada etapa desse processo.

            Incapaz de conceber este caráter processual da verdade, a consciência está quase sempre lhe dando com opostos, ou seja, ora crê na relatividade do saber, caindo num ceticismo, ora absolutiza, tornando-se dogmática. Uma e outra são, em si, formas de falsa consciência. Ela é falsa não em razão de ser incapaz de conceber este caráter processual, mas porque “os tempos não estão maduros”.

            “A verdade não é uma moeda já cunhada, que pode circular como uma realidade já concluída. Ela não está feita, faz-se, não é estável, vacila” (p. 68).

            O saber absoluto, como resultado desse processo, é o estado último do Espírito. “... torna-se claro o sentido da falsa consciência para Hegel...” (p. 68), escreve Rouanet. Ela consiste na ignorância desse processo; ignora sua origem e seu fim. O resultado é que, mesmo a falsa consciência é também verdadeira, na medida em que também é parte do processo, embora sua verdade seja apenas parcial, enquanto verdade de um momento histórico.

            Por fim, conclui Rouanet:

Em seus diversos momentos, em sua imaturidade, em sua inexperiência, em sua incapacidade, só penosamente superada, de decifrar no em-si suas próprias estruturas, de ver no outro uma parte de si mesma, a consciência é agente de um processo histórico que a ultrapassa. Ela ajuda a dizer o ser, mas é o ser que se diz nela. A partir de Hegel, é nesse outro lado da consciência, na vida material, na história, na sociedade, que vai ser procurado o segredo da falsa consciência (p. 69).

            Para Feuerbach, a consciência, incapaz de exprimir a verdade do ser, projeta-a no mundo ideal que transcende a realidade, sob forma de religião. “A religião é assim a forma alienada da essência humana” (p. 70).

            Incapaz de se auto afirmar como essência da realidade, o homem se projeta e se transporta para uma esfera do supra-sensível e não se reconhece em sua própria criação. Sob a forma da religião, os homens criam o seu Deus mas não percebem que os atributos de Deus são os atributos do homem e que a existência de Deus é uma projeção da existência humana, como resultado de uma incapacidade da consciência exprimir a verdade do ser.

            “Mas o homem não sabe que a religião é sua própria imagem. Ela o reflete, mas num espelho deformante, que o desfigura. Ela é sua consciência, mas uma consciência obscura (...) O trânsito dessa consciência imperfeita para a consciência verdadeira passa pela abolição da religião” (p. 71). Entretanto, Feuerbach, na análise de Rouanet, não aceita o caminho proposto por Hegel para essa transição.

            Para Hegel, essa superação não é uma negação completa da religião. A religião, tornando-se positiva, isto é, a teologia tornando-se filosofia, sobreviveria ainda como saber implícito. Feuerbach entende que essa superação deve ser completa,

é efetivamente uma negação da negação, uma volta à origem, ao solo onde brotou a ilusão religiosa. Esse solo não é a da especulação, mas o da vida real: não o Espírito, mas o homem concreto. Só é verdadeiro o que é real-verdadeiro em oposição ao meramente pensado, sonhado, imaginado. O conceito do ser, da existência, é o primeiro e original conceito da verdade (p. 71).

 

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            O conceito de falsa consciência como tal, associado ao conceito de ideologia, surge pela primeira vez num texto de Engels, citado por Rounaet: “A ideologia é um processo que o chamado pensador executa, certamente com consciência, mas com uma falsa consciência” (p. 73).

            Esta falsa consciência está, por assim dizer, em todos os trabalhos de Karl Marx, a partir de um esforço teórico em analisar a sociedade em suas condições materiais de existência. Essa falsa consciência estaria dividida em quatro fases: a primeira, hegeliana, a falsa consciência é o resultado da ignorância, o não-saber do sujeito quanto às estruturas de um mundo alienado; a segunda, esta ignorância refere-se à base material da sociedade; a terceira, relacionada ao modo de produção capitalista, o não-saber é referido à própria forma de existência do real – teoria do fetichismo; por último, temos a teoria dos “aparelhos ideológicos de Estado”.

            Marx reconhece o mérito de Hegel, qual seja, o de ter percebido as formas alienadas da realidade como a riqueza, o Estado, a religião, e com isso, a Fenomenologia é uma crítica real. Entretanto, “a Fenomenologia é uma crítica oculta, obscura para si, e mistificadora” (p. 75). Com esta crítica de Marx, Rouanet prossegue analisando a Fenomenologia que, ao invés de negar o mundo alienado, faz dessa alienação uma das formas pela qual o Espírito se supera a si mesmo. O Espírito se reencontra em sua própria alienação. A alienação é parte do Espírito, como resultado de um processo que deve ser superado. “É por isso que a crítica hegeliana da ilusão é ela própria ilusória” (p. 76), continua Rouanet. Ao invés de criticar o ser ilusório, define como ilusório o ser real. Aí está uma das raízes da Fenomenologia. Nesse processo de alienação, as contradições reais são imanentes ao próprio Espírito, embora o sejam apenas em aparência, embora constitua apenas o invólucro, “a forma exotérica desses contrastes”.

            “A famosa inversão marxista, pela qual o hegelianismo, sistema invertido, é colocado sobre seus pés, é antes de mais nada uma inversão da teoria hegeliana da ilusão” (p. 76). Para Hegel, a confirmação do verdadeiro ser não se dá pela negação do ilusório, mas pela confirmação do ilusório ou do ser alienado como um ser objetivo, exterior ao homem e dele independente. A falsa consciência faz parte do processo histórico que se passa toda inteira no Espírito.

            A partir da crítica do hegelianismo, Marx parte para o desenvolvimento de sua própria teoria: “a consciência é falsa quando as condições históricas, como no capitalismo, confiscam a objetividade humana, fazendo o produto do seu trabalho aparecer, não como uma coisa sua, mas como uma coisa alheia, na qual ele não se reconhece, na qual ele se desconhece” (p. 77). A falsa consciência é, antes de tudo, um produto histórico, é o fenômeno histórico que condena o homem ao falso conhecimento e transforma a realidade em ilusão. Não é um movimento no interior do Espírito, mas é um fato histórico.

            Marx conclui que, se a falsa consciência é um produto histórico, só através de uma transformação das condições históricas é que o falso conhecimento pode ser superado e o homem poderá perceber a realidade como ela é, libertado-se desse mundo alienado. Para tal, é preciso preconizar uma desalienação universal (seja a exteriorização alienada do homem da religião, no Estado, etc.), precedida por uma emancipação genérica do homem, em todos os sentidos e domínios. Na base dessas transformações, podemos encontrar a filosofia e o proletariado, como nos dirá Rouanet: “a filosofia (como arma crítica) constitui a realidade virtual da ordem nova, e precisa, não ser abolida, mas superada. Ela não pode realizar-se sem ser dissolvida, porque suas promessas são ilusórias; mas não pode ser dissolvida antes de surgirem as condições históricas para sua realização. Devidamente depurada, ela pode transformar-se em “força material” (...) A cabeça da emancipação é a filosofia, seu coração é o proletariado. A filosofia não pode realizar-se sem a superação do proletariado, o proletariado não pode superar-se sem a realização da filosofia” (p. 82).

            Assim se combinam filosofia e proletariado. é preciso abandonar o terreno teórico e partir para uma perspectiva de uma prática revolucionária. No entanto, a ação precisa da reflexão, do autoquestionamento, da teoria, de uma ação consciente do sujeito, para que essa prática não seja uma prática alienada. À interpretação da realidade, é preciso unir a transformação do mundo.

            O papel da filosofia como arma crítica é mostrar as estruturas alienadas da realidade, em oposição ao que anteriormente a própria filosofia especulativa havia lido as avessas. Nisso consiste o seu processo de superação e não de abolição, entretanto, mesmo esse processo de superação encerra com o fim da filosofia. “Graças à crítica, a filosofia deixa de ser mistificadora, e as promessas nela incorporadas podem realizar-se, e com isso ela pode extinguir-se: revolucionada a prática, o sonho da prática deixa de ser necessário” (p. 82).

           No dizer de Rouanet, Marx irá romper definitivamente com seu passado filosófico (influência hegeliana e feuerbachiana, embora essa ruptura não seja total), criando uma teoria histórica e materialista da falsa consciência. “Não é o homem em geral, com efeito, ou a essência humana, mesmo concebida em termos materialistas, que gera os seus fantasmas, e sim o homem social, inscrito em relações materiais de produção, produzindo seus meios de existência” (p. 83).

            Toda consciência é um produto da prática material dos homens, um produto social. O homem se distingue dos animais na medida em que começa a produzir seus meios de vida material e conseqüentemente, suas instituições sociais e políticas. Sua consciência é o produto da sua interação com a natureza. A consciência é um momento da vida material. “Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (p. 85).

            Dessa forma, o que determina a verdade ou a falsidade da consciência? Quando, num estágio histórico determinado, o reflexo das condições materiais de existência forem representados de forma adequada ou inadequada. A partir daqui, entraremos então no aspecto talvez mais importante da falsa consciência, que constitui o campo ideológico. “A essência da ideologia, enquanto produto da história, é ignorar a história ou deformá-la” (p. 86). A ideologia, como falso saber sobre a realidade, é em si um momento dessa realidade, e não pode ser dissipada simplesmente por uma qualquer tentativa de opor ideias a ideias, mas por uma refutação prática, capaz de modificar a estrutura ilusória em que se encontra mergulhada a sociedade.

            No entanto, Marx não se limita até este ponto. Segue em sua crítica. Conforme Rouanet, é necessário abandonar todo o plano das ideias, assumir o ponto de vista da história real; é na análise da atividade prática, da vida real, do processo e desenvolvimento prático dos homens que devemos nos situar.

Enquanto ilusão absoluta, a filosofia não tem mais estatura para funcionar como cabeça da revolução proletária. Ela não deve mais ser superada, mas abolida (...) A filosofia deve ceder lugar à ciência, a única forma de pensamento capaz de compreender tanto a natureza do real como a natureza da ilusão [...] [e conclui] Não conhecemos senão uma ciência, a ciência da história (p. 88).

            Até aqui, a falsa consciência foi concebida por Marx como um não-saber do sujeito, uma forma alienada de conceber o movimento real escondido atrás do movimento aparente. Surge então uma nova perspectiva de análise: a teoria do fetichismo. “Em sua forma mais geral, o fetichismo designa a propriedade necessária que têm as relações sociais do capitalismo de se manifestarem numa forma objetiva em que elas se tornam invisíveis” (p. 89).

            Se antes a ilusão poderia ser removida pela crítica ou pela ciência da história, no momento em que o indivíduo passasse a conhecer as verdadeiras estruturas do real, na teoria do fetichismo essa dissolução não pode mais ser removida apenas pela percepção do real, porque a ilusão agora é analisada como inerente à própria realidade, e está impressa no modo de produção capitalista, onde a produção de mercadorias se transforma na forma predominante de atividade econômica. A ilusão deixou de ser apenas um fato da consciência para se tornar um fato social.

Nas condições concretas do capitalismo, o valor só pode aparecer na forma-mercadoria, ele assume a forma do valor de troca, e nela se manifesta, ao mesmo tempo que se torna invisível (...) É essa, de fato, a essência do fetichismo: ele não é o movimento pelo qual as relações entre os homens assumem a forma de uma relação entre coisas, mas o processo pelo qual as relações sociais se projetam numa forma aparente (p. 91).

            Outra característica da teoria do fetichismo é a forma-salário, que aparece como estrutura invertida nas relações de produção.

A essência da relação capitalista de trabalho, que é o trabalho gratuito, a criação, não remunerada, de mais-valia, não pode se tornar visível, e a invisibilidade é assegurada por uma forma fenomenal, oposta à sua forma real, que mascara a existência e o trabalho não pago, e cria a aparência de que o salário do trabalhador corresponde ao trabalho por ele realizado, quando na verdade corresponde apenas ao preço de mercado da mercadoria força de trabalho (p. 93).

            Na realidade, a forma-salário encerra uma grande confusão entre valor do trabalho e valor da força de trabalho. A força de trabalho é uma mercadoria comprada pelo capitalista, cujo valor é gerar lucro, que se transforma em valor excedente, em mais-valia, quando o trabalhador tem sua jornada de trabalho prolongada, além do necessário, na produção de mercadoria, sem ter participação no lucro desse excedente.

O fetichismo transparece mais claramente ainda no juro. Ele constitui, com efeito, uma simples derivação do lucro, o produto de uma cisão do lucro, que se subdivide em lucro empresarial e numa soma que deve ser reembolsada, sob a forma de juros, ao capitalista financeiro que emprestou dinheiro ao capitalista industrial. Se o lucro é uma forma fetichizada da mais-valia, o juro é uma forma fetichizada do lucro (p. 96).

            Para concluir o exame das formas aparentes em que se projetam o modo de produção capitalista, Rouanet, depois de longo exame sobre mais-valia, nos leva a ideia de renda da terra (ou renda fundiária), encerrando o processo de fetichização:

Salário, lucro, juros e renda constituem rendimentos distribuídos ao trabalhador, ao capitalista e ao proprietário, não na imaginação dos agentes, mas na realidade; ilusória, apenas, é a suposição de que esses rendimentos constituem a remuneração pela participação de cada um deles, em partes iguais, na criação do produto e do valor (p. 99).

            A ilusão consiste ainda no fato de que esse produto e esse valor não são gerados pela força de trabalho – outro conceito caro da teoria do fetichismo –, além de apresentar as formas sociais do modo de produção capitalista como se fossem formas naturais e essenciais da existência e das relações sociais.

Nas polaridades capital/lucro, ou melhor ainda, capital/juro, terra/renda e trabalho/salário, nessa trindade econômica vista como a conexão entre as partes componentes do valor e a riqueza em geral e suas fontes, manifesta-se a mistificação completa do modo de produção capitalista (...) um mundo encantado e pervertido, invertido, em que Monsieur le Capital e Madame la Terre dançam sua ronda fantasmagórica como personagens sociais e ao mesmo tempo como meras coisas” (p. 101).

            A crítica do fetichismo consiste, portanto, em desmistificar a prática do modo de produção capitalista em sua “fórmula trinitária”. Não se trata mais de fazer a crítica das ilusões do sujeito, mas de fazer a crítica da realidade ilusória: papel que é atribuído à ciência. “Em uma palavra, a tarefa de investigar o movimento aparente e reconduzi-lo ao movimento real” (p. 102).

            Na medida em que o movimento aparente se confunde com o movimento real, temos a gênese da falsa consciência; não é mais na consciência do sujeito que se processa a mistificação da realidade (como nas fases anteriores) e sim na própria realidade.

            Na realidade, estamos num como que círculo vicioso: “A importância da consciência, ainda implícita, se tornará explícita na teoria dos aparelhos ideológicos de Estado (...) A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe também dos meios de produção intelectual” (p. 104). A classe dominante dirige e difunde na sociedade sua concepção do mundo, cuja aceitação generaliza e gera o consenso. É a classe dominante quem determina a forma de apreensão do real e um código de regras que determinam a conduta prática. Esta ação, exercida sobre as diversas gerações desde a infância, estrutura a sociedade de acordo com a ideologia da classe dirigente. “Quanto maior o consenso e menos necessária a violência, mais estável será a dominação de classe (...) Essa repressão interiorizada é induzida através do que Gramsci chama a estrutura ideológica” (p. 108). É esta teoria de Gramsci que será retomada quase literalmente por Althusser. As “estruturas ideológicas” se transformam em aparelhos ideológicos do Estado: Igreja, escolas, meios de comunicação, etc., toda a rede de instituições se cristalizam através de uma impecável rede de alienação. Através dessa rede que cria as ilusões da consciência, o sujeito se torna incapaz de perceber as estruturas do mundo alienado e da vida material. É essa mesma rede de instituições que geram e mantém a falsa consciência.

            “Com a teoria dos aparelhos ideológicos de Estado, o círculo se fecha” (p. 112). A fonte da ilusão não é apenas o indivíduo – não é se quer o indivíduo que se ilude, e sim o homem como ser genérico – mas é um processo global que inclui a vida material e as relações sociais.

 

Fonte: ROUANET, Sérgio P. A Razão Cativa. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987.

 

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