Indústria Farmacêutica e Medicina Tradicional: entre Fármacos, Plantas Medicinais e Fitoterápicos

por Alexsandro M. Medeiros

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publicado em out. 2015

            A Indústria Farmacêutica, que pode ser definida “como um conjunto de oligopólios com multiprodutos diferenciados em segmentos de classes terapêuticas específicas, cujo consumo é fortemente mediado pela necessidade de prescrição médica” (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006, p. 2379) tem adotado, em geral, como referencial para se pensar um modelo biomédico de atenção à Saúde o mercado de consumo consolidado pelos grandes laboratórios farmacêuticos e que tem por fim específico sustentar o acúmulo de Capital por parte de tais laboratórios[1]. Um mercado que, só no Brasil, teve no início deste século um faturamento anual de 10,3 bilhões de dólares fazendo com que o Brasil esteja entre os dez maiores mercados consumidores de produtos farmacêuticos (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006; BERMUDEZ et. al., 2000). No caso do Brasil é válido ressaltar, todavia, que este é um dos poucos países que possui um sistema estatal de produção de medicamentos, instalados em vários Estados do território nacional, como o Laboratório de Tecnologia Farmacêutica (LTF), da Universidade Federal da Paraíba, o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco S.A. (LAFEPE), o Laboratório Farmacêutico de Santa Catarina (LAFESC), o Laboratório Químico Farmacêutico da Aeronáutica (LAQFA), entre outros, constituindo um importante patrimônio público “os quais vêm contribuindo no abastecimento de medicamentos ao setor público, especialmente daqueles destinados a importantes doenças endêmicas que afligem a população, sem grande interesse comercial para o setor privado” (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006, p. 2381)[2].

            Um exemplo claro de como a Indústria Farmacêutica se pauta por um modelo mercadológico de atenção à Saúde é o fato de como organizações humanitárias como a Médicos Sem Fronteiras (MSF) apontam para a necessidade de criar mecanismos que levem os grandes produtores de medicamentos a desenvolver pesquisas para o tratamento de doenças próprias da realidade de países pobres do continente africano e da América Latina, por exemplo, sendo que neste caso, é imprescindível a intervenção do Estado para a produção de medicamentos eficazes e seguros que possam beneficiar tais países.

Essa organização [MSF] demonstra que, nos últimos cinco anos, nenhuma das vinte empresas farmacêuticas de maior faturamento bruto mundial lançou, no mercado, um único medicamento para qualquer uma das doenças negligenciadas e assinala, ainda, que o setor público também falhou na adoção de uma política que favorecesse o desenvolvimento de medicamentos destinados às necessidades epidemiológicas dessas sociedades, recomendando enfim que se direcionem recursos públicos para esses objetivos (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006, p. 2380).

            Partindo deste pressuposto, vamos buscar compreender a atual relação de consumo com os fármacos, tendo por base conceitos como a Indústria Cultural, termo cunhado por Adorno e Horkheimer (1947) e a Sociedade de Consumo, elucidada por Baudrillard (1970) ou do Hiperconsumo (Lipovetsky), e de como Práticas Integrativas e Complementares, através do uso de fitoterápicos e plantas medicinais pode ajudar a adotar uma perspectiva de saúde menos mercadológica e mais integradora.

            Por outro lado, um debate mais amplo sobre a biopolítica e o biopoder e a forma como as relações de poder se inscrevem na Medicina, no Estado e na Indústria Farmacêutica, influenciando nas políticas de acesso e promoção da saúde coletiva pode ser realizado a partir do estudo da obra de Michel Foucault. Por meio de um processo de medicalização (FOUCAULT, 2001), o paciente é visto como um objeto a partir de um saber legitimado sobre uma determinada espacialidade corporal, atuando como normatização da vida. Nesse sentido, a medicalização

emerge como um dispositivo que age como uma forma de individualização do poder, na medida em que o consumo de psicofármacos (elemento em análise aqui) se constitui em uma tecnologia de si. A biopolítica para Foucault consiste na ação do Estado ao controlar os corpos da mesma forma que controla a população (FOUCAULT, 2002 apud IGNÁCIO; NARDI, 2007, p. 90).

            Além disso, ao pensar sobre os impactos que a tecnologia impõe na sociedade industrial moderna cabe também uma análise do conceito de técnica em Herbert Marcuse (também representante da Escola de Frankfurt junto com Adorno e Horkheimer), segundo o qual a técnica tanto pode servir como um conjunto de instrumentos de controle e dominação, quanto de libertação. Uma racionalidade instrumental – termo cunhado pelos filósofos que criticam a Indústria Cultural – que privilegia os meios técnicos científicos como ferramenta de controle e dominação, inibindo a autonomia e capacidade humanas de crítica da realidade existente, produzindo indivíduos conformistas e acríticos na sociedade tecnológica.

            No caso da Indústria Cultural e da Sociedade de Consumo, o objetivo é claro:

As formas de produção, os meios de comunicação e até os aparatos de lazer são todos submetidos a um controle sutil, porém rigoroso, de uma classe ou grupo de classes dominantes com fins bem específicos: direcionar os interesses dos seus consumidores para aquilo que se oferece, de tal forma que esse direcionamento não seja percebido, havendo a impressão de que há uma liberdade de escolha (TELLES; COSTA; SEVERIANO, 2015, p. 02).

            Baudrillard (1970) em sua obra “Sociedade de Consumo” estabelece que há uma lógica que rege as relações entre o objeto de consumo e o sujeito consumidor, dentre as quais destacamos: o “valor de uso” que está relacionado com a funcionalidade do objeto e o “valor de câmbio” que equivale ao valor monetário do produto.

           Já “para a Escola de Frankfurt, há uma preocupação com os fins que são dados para o que advém dos avanços da ciência, denunciando o que chamaram de Razão Instrumental” (TELLES; COSTA; SEVERIANO, 2015, p. 05). Para essa racionalidade instrumental os meios importam mais do que os fins. Dentro da lógica de produção capitalista, a Razão Instrumental promove um papel massificante e alienante em favor da Indústria Cultural e, no caso da Indústria Farmacêutica, a produção, divulgação e prescrição de fármacos importa mais do que a saúde das pessoas: transforma a saúde em mercadoria para a Indústria Cultural.

            No que tange ao uso de fármacos, há uma relação de consumo e biopoder sustentada no tripé: dependência, assistencialismo, individualismo (TELLES; COSTA; SEVERIANO, 2015; IGNÁCIO; NARDI, 2007). É interesse da Indústria Farmacêutica a manutenção deste tripé. A Indústria Farmacêutica sobrevive deste tripé e, nesse caso, “a saúde do capital prevalece sobre a saúde humana: o consumo é eleito como fator mais precioso (ocupa toda a vida social) que a própria saúde dos homens” (TELLES; COSTA; SEVERIANO, 2015, p. 08).

            A utilização de medicamentos e fármacos é vista aqui como um dispositivo que opera um jogo de poder/controle. O consumo de medicamentos se torna um imperativo de uma engrenagem biopolítica da gestão em saúde, que promete o fim do sofrimento (físico) e até da felicidade (combatendo a depressão, ansiedade, estresse). Uma forma de gerir e produzir saúde mercadológica, pois a ideia é “vender” saúde através do consumo de medicamentos e consultas.

Nos últimos anos, nos países em desenvolvimento, as questões dos medicamentos e da assistência farmacêutica vêm ganhando espaço na agenda governamental e na sociedade [...] Nas últimas décadas, tem-se ampliado a abrangência do medicamento, de modo que, hoje, existem produtos para quase todas as enfermidades. Além disso, os medicamentos são cada vez mais seguros e eficazes, contribuindo para aumentar a expectativa e qualidade de vida. Por tudo isso, são apontados como um importante indicador de qualidade dos serviços de saúde (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006, p. 2380)

            Uma série de problemas envolvendo a Indústria Farmacêutica justifica a análise em questão. Desde denúncias de superfaturamento de matérias-primas, abuso de preços de medicamentos, necessidade de regulação para amenizar os efeitos mercadológicos da Indústria Farmacêutica sobre a sociedade, mercados concentrados, entre outros (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006). Um caso de destaque aqui no Brasil justifica essa reflexão.

No biênio 1999/2000, o tema “medicamentos” volta a suscitar o interesse da mídia e da sociedade em geral, culminando com a instalação, em novembro de 1999, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Medicamentos (CPI) na Câmara dos Deputados[3]. As razões que justificaram sua instalação estão diretamente relacionadas com os aumentos de preços, perpetrados pelos produtores, para além dos índices inflacionários e com as questões suscitadas pela falsificação de produtos. As denúncias de adulteração de medicamentos de laboratórios internacionais privados com filiais no país feriram a imagem desse setor produtivo. Os casos do anticoncepcional Microvlar e do Androcur para câncer de próstata, ambos da Schering do Brasil, foram amplamente noticiados pela imprensa (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006, p. 2384)[4].

            No caso do Microvlar, mulheres teriam engravidado depois de tomarem comprimidos deste anticoncepcional, mas sem o princípio ativo (as pílulas continham farinha). Já o Androcur, usado no tratamento de câncer de próstata, teve um de seus lotes falsificados, tendo sido considerado inadequado para combater a doença e foi adquirido inclusive por Secretarias de Saúde de Estado, como em Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, entre outros. No caso do Androcur a responsabilidade penal não foi determinada para a empresa Schering do Brasil, mas algumas das distribuidoras do remédio. Uma reportagem da Revista Veja de 08 de julho de 1998 deu destaque ao caso.

            Um dado interessante que reforça o que estamos analisando aqui pode ser extraído do relatório da CPI mencionado por Oliveira, Labra e Bermudez: “Ressalta o documento que a produção dos laboratórios privados brasileiros orientou sua política de produção de medicamentos segundo as leis de mercado, desconsiderando a especificidade e relevância dos medicamentos voltados para a população de baixa renda” (2006, p. 2385 – grifo nosso). Este fato denota que o mercado consumidor tem sido o elemento definidor da agenda dos grandes laboratórios produtores de fármacos e, por conseguinte, da agenda de prioridades de pesquisa e produção de medicamentos. Uma lógica pautada pelo modelo biomédico de atenção à saúde mercadológica, ou seja, a saúde transformada em mercadoria e produto de venda como já frisamos.

 

Plantas Medicinais e Saberes Tradicionais

            Quando colocamos em discussão a utilização do uso de medicamentos, fármacos e psicofármacos não significa dizer quer estamos condenando, a priori, a sua utilização. E nem mesmo estamos questionando o fato de que não devemos lidar com nosso sofrimento, angústias e ansiedade, afinal, seria possível nos dias atuais vivermos sem ansiedade? As adversidades da vida nos envolvem em uma teia de doenças e estados de sofrimento psíquico e emocional que vão desde a ansiedade, angústia, depressão, estresse, insônia, obesidade e tantas outras. O fato para o qual queremos aqui chamar a atenção do leitor é como a saúde tem sido alvo de uma disputa mercadológica que coloca o capital e o lucro acima das necessidades mais básicas dos seres humanos.

            Esta reflexão nos leva a uma série de questionamentos em torno dos quais não temos a pretensão de ter aqui uma resposta definitiva, mas apenas esboçar algumas reflexões que possam contribuir para uma visão mais integradora de um modelo biomédico de atenção à saúde. Em que medida podemos considerar o uso exagerado de fármacos uma imposição da Indústria Farmacêutica? A classe médica trabalha a favor de seus pacientes ou da indústria que fabrica remédios? Há uma preocupação com a saúde do ser humano, ou com a do sistema capitalista?

            O que propomos aqui é uma outra forma de ver o par saúde-doença, que não seja a partir de uma visão consumista e mercadológica, e que pode muito bem ser aproveitada levando em consideração um conhecimento milenar que tem sido passado de geração em geração através dos nossos antepassados, e que tem como base a mesma matéria prima da Indústria Farmacêutica: a utilização de plantas medicinais através do conhecimento, saberes e práticas tradicionais.

            A utilização das plantas com fins não apenas alimentícios mas curativo e medicinal (base dos medicamentos, fármacos e psicofármacos) data desde tempos remotos (MACIEL; et. al., 2002) e hoje a Organização Mundial de Saúde (OMS) atestou que 80% da população mundial dependia das plantas medicinais para a atenção primária de saúde.

            Algumas plantas já tem inclusive seu uso reconhecido pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e muitas outras ainda aguardam por comprovação de sua eficácia.

Quanto à oferta de medicamentos fitoterápicos e homeopáticos, o Ministério da Saúde após pactuação com os Estados e Municípios, incluiu no Elenco de Referência da Assistência Farmacêutica na Atenção Básica (Portaria nº 4.217, de 29/12/2010 [...] os produtos da farmacopeia homeopática brasileira e 08 medicamentos fitoterápicos passíveis de financiamento com recursos tripartite com dispensação no SUS. São eles: a Alcachofra (Cynara scolymus); Aroeira (Schinus terebinthifolius); Cáscara-sagrada (Rhamnus purshiana); Espinheira-santa (Maytenus ilicifolia); Garra-do diabo (Harpagophytum procumbens); Guaco (Mikania glomerata); Isoflavona de Soja (Glycine max); Unha-de-gato (Uncaria tomentosa) (RODRIGUES; et. al., 2011, p. 27).

            É preciso ressaltar aqui uma distinção conceitual que considera o uso de plantas medicinais de forma industrializada sendo conhecido como um método fitoterápico: um método terapêutico por meio das plantas e vem sendo usada no tratamento e prevenção de várias alterações de saúde, como gastrite, ansiedade, distúrbios do sono, processos inflamatórios dentre outros. A palavra tem sua origem grega, nos termos phito, que significa planta, e do termo therapia, que significa tratamento. Razão pela qual pode ser entendida como o estudo de plantas medicinais e suas aplicações nos tratamentos, prevenção, alívio ou na cura de doenças.

            A Fitoterapia requer, no entanto, seriedade em seu uso e indicação, pois apesar de ser um método terapêutico natural também apresenta contraindicações, efeitos colaterais, dosagens ideais e formas de uso. Sua ação, concomitante com outros medicamentos pode, inclusive, interferir na ação destes, diminuindo sua eficácia, e até gerando efeitos indesejáveis. Por isso é necessário uma atenção especial na sua utilização.

            Além do conhecimento já existente e do que já existe de forma regulamentada pela ANVISA, o saber tradicional sugere outras formas de utilização das plantas com fins medicinais, como a utilização do Capim Cidreira, Capim Limão, Capim Santo (Cymbopogon citratus), indicado principalmente no uso de suas folhas - secas ou não - para chás; a Camomila (Matricaria chamomilla L.), as flores podem ser usadas em chás, como sedativas, em momentos de ansiedade e insônia; o Maracujá (Passiflora alata), Principalmente suas folhas e flores podem ser usadas como calmantes, sedativas e indutoras de sono; e a Lavanda (Lavanda sativa), que pode ser encontrada em óleos essenciais e usada em óleos de massagem ou aromatização de ambiente.

Disponível em: Blog A Casa Nova (Acessado em: 10/08/2015)

            Richard Evans Schultes relata inúmeras espécies vegetais brasileiras usadas por caboclos e indígenas da Amazônia (apud MACIEL, et. al., 2002)[6]. E Maria Aparecida Maciel, et. al., (2002) nos fornece um estudo bastante relevante sobre duas espécies de plantas medicinais: o óleo de copaíba (Copaifera L.); e uma planta de uso popular na região amazônica: Croton cajucara, conhecida como sacaca. A utilização da copaíba como agente inflamatório e cicatrizante é conhecido pelos indígenas desde o século XVI, podendo ser administrado oralmente, em pomadas ou do óleo in natura. Mas seus efeitos terapêuticos são bem mais amplos e pode ser indicado como estimulante, diurético, expectorante, tratamento de doenças de origem sifilítica, entre outros. No que diz respeito à sacaca,

No estado do Pará, as folhas e cascas do caule desta planta são utilizadas em forma de chá ou pílulas, no combate a diabetes, diarréia, malária, febre, problemas estomacais, inflamações do fígado, rins, vesícula e no controle de índices elevados de colesterol [...] Porém, inúmeros casos de hepatite tóxica já foram notificados em hospitais públicos dessa cidade, devido ao uso prolongado deste chá, em dosagens concentradas [...] No caso do uso correto do chá das cascas, não encontra-se descritos na literatura, nenhum tipo de efeito colateral (MACIEL, et. al, 2002, p. 433).

            Já Monteles e Pinheiro nos proporcionam um estudo de caso sob uma perspectiva etnobotânica em uma comunidade quilombola maranhense, onde foram levantadas “121 espécies, distribuídas em 56 famílias botânicas e 101 gênero” (2007, p. 38)[7]. Monteles e Pinheiro analisaram desde o cultivo e extração das plantas utilizadas na medicina tradicional local, até sua aplicação dentro da comunidade. Das plantas medicinais cultivadas os pesquisadores encontraram, principalmente: Mastruz, Boldo, Favacão, Favaquinha, Oriza e Veja-morta; além das espécies arbóreas de uso alimentício e medicinal, como a Manga, Caju, Laranja da terra e Mamão.

            Qualquer que seja a forma de utilização de plantas com fins terapêuticos, é preciso reconhecer que:

O Brasil possui grande potencial para o desenvolvimento dessa terapêutica, como a maior diversidade vegetal do mundo, ampla sociodiversidade, uso de plantas medicinais, vinculado ao conhecimento tradicional e tecnologia para validar cientificamente este conhecimento (GUARULHOS, 2014, p. 17).

            Contudo, é preciso destacar que não estamos aqui defendendo indiscriminadamente a utilização de plantas com fins medicinais. Mas que sua utilização seja realizada com base em estudos científicos que comprovem as indicações que já possuímos com base no conhecimento popular e tradicional, além de estudos que possam instruir quanto a dosagens específicas, toxicidade e interações medicamentosas, cujos princípios ativos possam alterar o funcionamento de órgãos e sistemas, restaurando o equilíbrio do organismo ou promovendo a saúde. Ou até mesmo fortalecer a produção oficial de fitoterápicos em função da promoção da saúde e ampliar o uso de plantas medicinais com base no conhecimento e prática dos povos tradicionais, desde que a saúde humana seja vista sempre como o fim, e nunca como um meio para se obter cada vez mais lucros.

            Não se trata de opor conhecimento tradicional e conhecimento científico, mas utilizar ambas as formas de saber, como propõe o Sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2007), de um saber científico que não produza um “epistemicídio” ou a “morte” de conhecimentos alternativos, por considerar que o único conhecimento válido e rigoroso é o tipo de conhecimento científico. A ciência, não há dúvidas, é um saber, mas não é o único, e deve dialogar com outros saberes, como o saber popular, indígena, camponês etc.

Não há dúvidas de que para levar o homem ou a mulher a Lua não há conhecimento melhor do que o científico; o problema é que hoje também sabemos que, para preservar a biodiversidade, de nada serve a ciência moderna. Ao contrário, ela a destrói. Porque o que vem conservando e mantendo a biodiversidade são os conhecimentos indígenas e camponeses. Seria apenas coincidência que 80% da biodiversidade se encontra em território indígena? Não. É porque a natureza neles é a Pachamana [divindade Inca que se identifica com a Mãe Terra], não é um recurso natural: “É parte de nossa sociabilidade, é parte de nossa vida” (2007, p. 33).

            Hoje podemos medir e analisar o Sol, decifrar a linguagem genética. É evidente que o conhecimento científico trouxe progressos e técnicas inéditas. Mas essa mesma ciência apresenta-nos problemas graves que se referem tanto ao conhecimento que produz quanto à sociedade que transforma. O mesmo conhecimento que descobriu a estrutura dos átomos, criou a bomba atômica.

            Essa análise e debate pode ser ainda aprofundado a partir da teoria da complexidade de Edgar Morin (2005) que, ao citar os diversos trabalhos, em muitos pontos antagônicos, de Karl Popper (A Lógica da Pesquisa Científica), Thomas Kuhn (A Estrutura das Revoluções Científicas), Paul Feyerabend (Contra o Método), demonstra que estes trabalhos têm como traço comum a ideia de que as teorias científicas, como os icebergs, têm enorme parte imersa não científica, mas indispensável ao desenvolvimento da ciência.

            Com base nestes apontamentos defendemos a ideia neste texto de que ninguém melhor do que os habitantes da Amazônia para compreender e melhor utilizar as riquezas nela existentes. Não podemos ignorar os conhecimentos e práticas dos povos tradicionais na análise, estudo e pesquisa para utilização das plantas com fins medicinais e terapêuticos. Defendemos aqui a combinação do conhecimento indígena e tradicional com as inovações científicas e tecnológicas da sociedade pós-moderna e que “é preciso aprender a tirar do que a terra possui ou pode dar, com a aplicação de novas técnicas e de nova orientação, as vantagens e os privilégios que não soubemos ou não pudemos até agora valorizar” (BATISTA, 2006, p. 131).

 

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[1] “dados apontam que as dez maiores indústrias farmacêuticas do mundo respondem por cerca de 40,4% do mercado mundial” (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006, p. 2380). Ver também BERMUDEZ, 1995. Além disso, “A concentração em grandes mercados com a participação de número reduzido de empresas é uma das principais características do mercado farmacêutico internacional de nossos dias. Nos anos 90, as fusões continuaram a ocorrer. Hoje em dia, cerca de cem companhias de grande porte são responsáveis por cerca de 90% dos produtos farmacêuticos para consumo Humano” (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006, p. 2380).

[2] Ver também BERMUDEZ 1997 e 1992.

[3] Ver também: Câmara dos Deputados, 2000. Para acessar o Relatório Final Aprovado da CPI veja o link: www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-de-inquerito/51-legislatura/cpimedic/relatfinal.html

[4] Ver também: CALLEGARI, 2000.

[6] Sobre o estudo de plantas medicinais na Amazônia ver também: VAN DEN BERG (1982); MARTINS (1989); NEVES (1989).

[7] Ver também: BALÉE (1986) e BERG (1991).

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