Interdisciplinaridade e Transdisciplinaridade

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em dez. 2018

            Interdisciplinaridade é um conceito que se refere ao processo de ligação existente entre duas ou mais disciplinas, a partir de algo que é comum entre elas. Por isso a interdisciplinaridade propõe a capacidade de dialogar entre as diversas ciências, fazendo entender o saber como um todo, e não como partes fragmentadas.

            A interdisciplinaridade considera o diálogo entre as disciplinas, porém, continua estruturada nas esferas da disciplinaridade. Um passo mais além temos a ideia de transdisciplinaridade, onde não haveria mais fronteiras entre as disciplinas e se consideraria outras fontes e níveis de conhecimento. A transdisciplinaridade é uma abordagem que visa à unidade do conhecimento, articulando elementos que passam entre, além e através das disciplinas, numa busca de compreensão da complexidade do mundo real.

            Na transdisciplinaridade há uma intercomunicação entre as disciplinas de tal modo que não existem fronteiras entre as disciplinas. Ao mesmo tempo em que procura uma interação máxima entre as disciplinas, respeita suas singularidades, onde cada uma colabora para um saber comum, o mais completo possível, sem transformá-las em uma única disciplina.

          A ideia de transdisciplinaridade surgiu para superar o conceito de disciplina, que configura-se pela departamentalização do saber em diversas matérias, em que cada disciplina é abordada de modo fragmentado e isolada das demais.

            A transdisciplinaridade não significa apenas que as disciplinas colaboram entre si, mas significa também que existe um pensamento organizador que ultrapassa as próprias disciplinas. Para haver essa dita transdisciplinaridade, é preciso haver um pensamento organizador, chamado pensamento complexo. O verdadeiro problema não é fazer uma adição de conhecimento, é organizar todo o conhecimento.

 

Fragmentação do Conhecimento

            A crítica a ideia de fragmentação do conhecimento não é nova. Autores como Edgar Morin, Fritjof Capra, Werner Heisenberg, Ivani Fazenda criticam de forma veemente essa ideia.

            Para Heisenberg, a ciência natural se desenvolveu com base na divisão cartesiana clássica entre res cogitans (coisa pensante) res extensa (coisa material), concentrando-se nesta última. “A influência da divisão cartesiana sobre o pensamento humano, nos séculos que se seguiram, dificilmente poderá ser exagerada, mas é justamente essa divisão que teremos que criticar, mais adiante, do atual ponto de vista da física” (HEISENBERG, p. 112-113). Na mesma esteira de Heisenberg, Capra (2001, p. 45) critica o que ele chama de a concepção cartesiana e mecanicista da natureza, que teriam levado “à fragmentação característica do nosso pensamento em geral e das nossas disciplinas acadêmicas, e levou à atitude generalizada de reducionismo na ciência”.

            Morin (2005), por sua vez, considera que o desenvolvimento científico comporta um certo número de traços negativos dentre os quais ele considera: 1) a fragmentação e superespecialização do saber: “O parcelamento e a compartimentação dos saberes impedem apreender o que está tecido junto” (MORIN, 2000, p.45); 2) dicotomia entre as ciências da natureza e do homem (as ciências da natureza excluem o espírito e a cultura que produzem essa mesma ciência e do ponto de vista das ciências humanas somos incapazes de nos pensar como seres biologicamente constituídos); 3) as ciências antropossociais adquirem todos os vícios da especialização, dilacerando os conceitos de homem, indivíduo e sociedade; 4) a tendência para a fragmentação tem como consequência o anonimato: o especialista torna-se ignorante de tudo aquilo que não concerne a sua disciplina e o não-especialista renuncia a refletir sobre o mundo, a vida, a sociedade, deixando essa tarefa aos cientistas que não tem os meios conceituais para tanto; 5) o progresso científico produz potencialidades subjugadoras e mortais. Morin (2005) critica o pensamento científico que reduz a realidade mais complexa à menos complexa onde as ciências se tornam distintas e quando se quer associar se reduz o biológico ao físico-químico, o psíquico ao biológico. Por isso defende um paradigma da complexidade que possa fazer as ciências se comunicarem sem operar nenhum tipo de redução. É preciso “um paradigma de complexidade, que, ao mesmo tempo, separe e associe, que conceba os níveis de emergência da realidade sem os reduzir às unidades elementares e às leis gerais” (id., ibidem, p. 138). E ainda: “a ciência transdisciplinar é a que poderá desenvolver-se a partir dessas comunicações, dado que o antropossocial remete ao biológico, que remete ao físico, que remete ao antropossocial” (id., ibidem, p. 139).

            Outro teórico crítico da polarização/dicotomia entre os mundos da ciência e das humanidades é Charles Percy Snow. Foi através da convivência com os cientistas de um lado, e escritores do outro, que Snow começou a refletir sobre o que ele chamou de as duas culturas. “Por formação, eu era um cientista; por vocação, um escritor” (SNOW, 1995, p. 17). Snow “transitava pelos dois campos [da ciência e das letras] nos quais os componentes apresentam ‘imagens distorcidas’ uns dos outros e dificuldades de comunicação como resultado de uma especialização excessiva e visão estreita” (KRASILCHIK, 1992, p. 80).

            Snow inicia sua crítica à oposição entre o que ele chama de cientistas versus humanistas: os humanistas não conhecem conceitos básicos da Ciência e os cientistas não tomam conhecimento das dimensões psicológicas, sociais e éticas dos problemas científicos:

 

dois grupos, comparáveis em inteligência, idênticos em raça, não muito distantes em origem social, que recebiam quase os mesmos salários, mas que haviam cessado quase totalmente de se comunicar entre si e que, na esfera intelectual, moral e psicológica, tinham tão pouca coisa em comum que ir de Burltngton House ou South Kensington a Chelsea era como cruzar um oceano (SNOW, 1995, p. 18-19 – Burlington House: sede da Royal Acaderny of Arts. South Kensington: bairro de Londres famoso pelos seus museus, de ciência, de história natural etc. Chelsea: bairro de Londres que se distinguiu por ser habitado por artistas e escritores).

 

            Posteriormente a  crítica de Snow se dirige também ao que ele chama de ciência pura e aplicada. “É admissível englobar cientistas puros e aplicados na mesma cultura científica, mas os fossos entre eles são vastos. Muitas vezes os cientistas puros e os engenheiros divergem totalmente entre si” (SNOW, 1995, p. 51).

 

Os cientistas puros, de modo geral, têm-se mostrado meio obtusos com relação à engenharia e à ciência aplicada. Não poderiam estar interessados. Não iriam reconhecer que muitos dos problemas eram intelectualmente, tão rigorosos quanto os problemas puros, e que muitas das suas soluções eram igualmente satisfatórias e belas (SNOW, 1995, p. 51).

 

            Em sua análise Snow conclui pela necessidade de se construir pontes para tornar transponível o que separa as duas culturas. E é precisamente neste ponto que surge a ideia de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Como esta ponte, capaz de superar o abismo de incompreensão e às vezes até com imagem distorcida do outro dos dois grupos polarizados: “estão aí como que num vácuo, porque aqueles que pertencem às duas culturas não se falam entre si” (SNOW, 1995, p. 35).

 

Construindo pontes entre os saberes

            A interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade são as formas encontradas para anular essa forma fragmentada de perceber a realidade e o conhecimento. A transdisciplinaridade é o que cria “a possibilidade de comunicação entre as ciências, e a ciência transdisciplinar é a que poderá desenvolver-se a partir dessas comunicações, dado que o antropossocial remete ao biológico, que remete ao físico, que remete ao antropossocial” (MORIN, 2005, p. 139). Vejamos as imagens abaixo para um compreensão mais clara.

            Na primeira imagem abaixo, temos a ideia de um conhecimento dividido de forma fragmentada, em que são bem nítidas as fronteiras entre eles.

 

 

            A segunda imagem caracteriza a ideia de interdisciplinaridade, onde as fronteiras que existiam entre as disciplinas se apagam e elas começam a dialogar entre si.

 

 

            Finalmente a última imagem. Em que não apenas as fronteiras entre as disciplinas não existem mais, como também fica caracterizado que elas formam a parte de um todo integrado mas respeitando, ainda, suas singularidades.

 

 

            A divisão das disciplinas em si não é algo negativo. Talvez seja até necessário. É uma maneira de organizar, de delimitar conhecimentos que são ordenados para facilitar a sua aprendizagem. Mas ao dividir o conhecimento em áreas, é preciso não perder de vista como estes diferentes conhecimentos podem dialogar entre si e como fazem parte de um todo ordenado.

            A interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade não implica na eliminação das disciplinas, mas um modo de fazer com que elas dialoguem entre si, estabelecendo ligações de convergência, complementaridade, interconexões entre os saberes. “A interdisciplinaridade caracteriza-se pela intensidade das trocas entre os especialistas e pelo grau de interação real das disciplinas no interior de um mesmo projeto de pesquisa” (JAPIASSU, 1976, p.74). Fazenda (2015, p. 12) ressalta como o conceito de interdisciplinaridade não anula a ideia de disciplinas: “O conceito de interdisciplinaridade como ensaiamos em todos nossos escritos desde 1979 e agora aprofundamos encontra-se diretamente ligado ao conceito de disciplina, onde a interpenetração ocorre sem a destruição básica às ciências conferidos”. E vai mais além ao afirmar que uma pesquisa interdisciplinar só é possível “onde várias disciplinas se reúnem a partir de um mesmo objeto” (FAZENDA, 2015, p. 13). Mas está claro que a interdisciplinaridade é muito mais do que uma junção de disciplinas: “trata-se de uma nova visão sobre as possibilidades de relação entre elas e entre as questões fundamentais da contemporaneidade” (FERNANDES, 2015, p. 51-52).

            Finalmente, os aspectos interdisciplinar e transdisciplinar nos remetem a ideia de pensar o conhecimento em forma de rede. Pensar o conhecimento em forma de rede significa pensar o conhecimento em um contexto integrado, sistêmico, diante de uma realidade complexa, em que tudo está conectado com tudo, com implicações significativas para a ideia de sociedade, em que a sociedade também deve ser pensada em forma de rede, ou seja, pensar a sociedade enquanto uma imagem complexa, na qual – diferentemente do individualismo – a sociedade não aparece apenas como um agregado de indivíduos independentes, mas como um contexto integrado, sistêmico, que se constitui de muitos elementos (nós) e relações entre esses nós.

            Com base nesta visão sistêmica do conhecimento e em forma de rede, podemos ilustrar da seguinte forma, a partir de uma adaptação das ilustrações contidas em Borges (2000, p. 26 e 27):

 

Referências Bibliográficas

BORGES, Maria Alice Guimarães. A compreensão da sociedade da informação. Ciência da Informação, Brasília, v. 29, n. 3, p. 25-32, set./dez. 2000. Acesso em: 04 dez. 2018.

CAPRA, F. O Ponto de Mutação. 22. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e Patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

FAZENDA, Ivani Catarinha Arantes. Interdisciplinaridade: didática e prática de ensino. In: GEPI – Grupo de Estudos e Pesquisa em Interdisciplinaridade. Interdisciplinaridade. v. 1, n. 6, especial. São Paulo: PUCSP, 2015, p. 9-17. Acesso em: 14 dez. 2018

FERNANDES, Peterson J. C. Desafios para a efetivação de um projeto interdisciplinar na contemporaneidade: um diálogo com Jürgen Habermas e Ivani Fazenda. In: GEPI – Grupo de Estudos e Pesquisa em Interdisciplinaridade. Interdisciplinaridade. v. 1, n. 6, especial. São Paulo: PUCSP, 2015, p. 44-55. Acesso em: 14 dez. 2018

KRASILCHIK, Myriam. Resenha de As duas culturas e um segundo olhar. Em Aberto, Brasília, ano 11, n. 55, p. 80-85, jul./set. 1992. Acesso em: 14 dez. 2018

MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. 8. ed. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

____. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

SNOW, C. P. As Duas Culturas e uma Segunda Leitura: Uma Versão Ampliada das Duas Culturas e a Revolução Científica. tradução de Geraldo Gerson de Souza e Renato de Azevedo Rezende Neto. São Paulo: editora da Universidade de São Paulo, 1995.

 

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