Martin Luther King Jr.: sonho e pesadelo na luta pelos direitos civis

por Alexsandro M. Medeiros

lattes.cnpq.br/6947356140810110

postado em mar. 2018

versão em Espanhol

            Martin Luther King (1929-1968) foi o filho primogênito de uma família de negros norte-americanos do Estado da Georgia: “de elevada educação, profundamente religioso, de personalidade ousada, e dramaturgo excepcionalmente dotado” (ALEXANDER, 2017, p. 215), “pastor evangélico [...] Prêmio Nobel da Paz, discípulo de Gandhi, líder anti-segregacionista [...] apóstolo da não violência” (BOERI, 2001, p. 52) e uma das mais importantes figuras norte americanas do século XX (BRANCH, 1988).

            Aos 19 anos seguiu os mesmos passos que seu pai e se tornou pastor batista, formando-se mais tarde em teologia no Seminário de Crozer. Com 25 anos tornou-se pastor da igreja batista de Montgomery e foi onde iniciou a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. Três anos depois se tornou líder de um movimento que tinha como objetivo acabar com as leis de segregação por meio de manifestações e boicotes pacíficos através da  Conferência da Liderança Cristã no Sul (SCLC): uma organização de igrejas e sacerdotes negros.

            Em seus estudos inspirou-se nas ideias de Mahatma Gandhi, principalmente por causa de seu ativismo não violento e foi até a Índia em 1959 para conhecer as formas de protesto pacífico de Gandhi. Outra fonte inspiradora sobre Luther King foi a obra A Desobediência Civil, de Henry D. Thoreau (1817-1862). A partir das influências de Gandhi e Thoreau, King se tornou um

desobediente que utilizou formas de atuação não violentas para tentar combater a hostilidade existente entre duas comunidades que formavam parte da mesma unidade política [...] O reverendo Martin Luther King, foi um dos dirigentes do movimento a favor dos direitos civis da população negra americana durante os anos cinquenta e sessenta (ARAÚJO, p. 17 apud BOERI, 2001, p. 51).

            Não podemos deixar de levar em consideração que, como pastor evangélico, Luther King era um homem temente a Deus e foi a sua crença na verdade dos ensinamentos de Cristo que o levaram adiante em sua luta em favor dos direitos civis.

            Mesmo preso, Luther King jamais deixou de levar em consideração a influência inspiradora de Ghandi e do Evangelho. Foi assim quando escreveu uma das inúmeras cartas endereçadas aos seus companheiros de Ministério, a Carta da prisão de Birminghan, escrita em 1963: “Logo no início de sua carta ele chama a atenção de todos para o perigo da prática da injustiça, eis que esta pode pôr em risco toda uma sociedade, ao mesmo tempo em que destaca a importância da luta não violenta, obedecendo princípios, regras e organização” (BOERI, 2001, p. 56).

Disponível em: Missio Alliance (Acesso em 06/03/2018)

            É também graças a esta Carta que conhecemos  a convicção de Luther King:

sobre “a interrelação existente entre todas as comunidades” e a força de sua crença que “nos encontramos presos nas ineludíveis de reciprocidade, unidos à mesmo carruagem do destino” (King, 1968). Desde 1957 King havia iniciado a expressar sua visão da “comunidade amada” unida pela boa vontade e compreensão mútua (VOPARIL, 2013, p. 97 – tradução nossa).

            Essa concepção de comunidade amada, de raízes cristãs, consiste em “um esforço para reconstruir – ou criar em primeiro lugar – um forte sentido de comunidade capaz de sustentar e empoderar um povo subjugado” (VOPARIL, 2103, p. 97 – tradução nossa).

            A ética cristã, fundada na justiça e no amor, como uma força para fomentar a mudança social.

“o amor cristão, funcionando como o método gandhiano da não violência, foi uma das armas mais potentes disponíveis para os negros em sua luta pela liberdade” (King, 1991: 16). Em sua visão, ágape se entende como “o amor em ação [...] o amor que buscar preservar e criar comunidade” (King, 1991: 20) (apud VOPARIL, 2013, p. 98).

 

A luta por direitos civis nos Estados Unidos

            A existência da discriminação racial nos Estados Unidos  foi algo bastante acentuado. Dentre as principais conquistas do movimento afro-americano pelos direitos civis nos anos 1950-1960, Andrews (1985, p. 52) destaca a superação da segregação, o sufrágio estendido aos negros através  do Ato dos Direitos de Voto de 1965, além de programas do governo federal norte americano para promover a igualdade de oportunidades e ações afirmativas para combater o racismo. “Em 1964 e 1965, o Congresso, atuando na esteira do assassinato de JFK, aboliu as leis de segregação e aprovou legislação que assegurava aos negros direitos civis e políticos” (ALEXANDER, 2017, p 218).

Os avanços políticos dos negros continuaram nos anos 70, mas principalmente nos níveis locais e estaduais. Afro-americanos foram eleitos para câmaras municipais e legislativos estaduais em crescente número, e muitas cidades e comarcas americanas (incluindo Los Angeles, Chicago, Detroit, Washington, Filadélfia, para nomear algumas) são governadas por prefeitos negros (ANDREWS, 1985, p. 52).

            Martin Luther King se notabilizou precisamente pelo seu engajamento político e defesa dos direitos civis da população negra norte americana, promovendo uma nova vivência da fé religiosa mesclada com a solidariedade cívica. Há que se considerar, todavia, que a ampla maioria dos pastores negros não participou dessa luta e militância. Paiva (2010, p. 124) chega a mensurar “que somente 14 das mais de 400 igrejas negras de Birmingham eram anfitriãs das reuniões do movimento [dos Direitos Civis]”. Esses poucos pastores negros do Sul dos Estados Unidos, dentre os quais Luther King, amparados pelos valores cristãos, defendiam valores como justiça, igualdade, liberdade.

Nessa ação cristã, o amor cristão era necessariamente acompanhado por um desejo de justiça. É o que propunha King no seu primeiro discurso em 1955: “Vamos ser cristãos em todas nossas ações. (Está bem) Mas eu quero dizer a vocês esta noite que não é suficiente falar sobre amor. O amor é um dos pontos primordiais da fé cristã. Há um outro lado chamado justiça. E a justiça é realmente o amor vivenciado. (É certo) A justiça é o amor corrigindo tudo aquilo que revolta contra o amor” (PAIVA, 2010, p. 125-126).

            Em Luther King se mesclavam o homem religioso e o militante dos direitos civis, em que o amor se torna capaz de levar à solidariedade social e à virtude política, em uma combinação harmoniosa entre religião e política. O amor entendido como ação e comunhão com a comunidade, como cimento que pode unir a comunidade, lutar contra as injustiças e prover as necessidades  de seus irmãos espirituais.

            E não podemos esquecer que foi em outro homem profundamente religioso que Luther King buscou inspiração para criar um método de luta. Esse método foi o da não violência, preconizado por Mahatma Gandhi.

Disponível em: The Sun. Acesso em 06/03/2018

Aplicando o método da não violência, Luther King liderou em 1963 “A Marcha para Washington” um protesto pelos direitos civis que contou com a participação de mais de 200.000 pessoas que se manifestaram em prol dos direitos civis de todos os cidadãos dos Estados Unidos.

            Foi nessa passeata histórica onde proferiu seu famoso discurso “I have a dream” (Eu tenho um sonho). Eis um trecho do seu pronunciamento:

O caminho está cheio de asperezas, mas não obstante fadigas e humilhações, eu tenho ainda um sonho(..) Sonho que sobre as colinas vermelhas da Geórgia, os filhos de antigos escravos e os filhos dos escravizadores possam sentar-se juntos à mesa da fraternidade. Sonho que o Estado do Mississipi, repleto de opressão e brutalidade, seja transformado numa terra de liberdade e justiça. Sonho que um dia o Alabama se transforme num Estado onde às crianças negras possam dar as mãos as crianças brancas e andar juntas como irmãos e irmãs. Eu tenho ainda um sonho(..) Com esta fé eu volto para o Sul. Com esta fé, arrancaremos da montanha da angústia um pedaço de esperança. Com esta fé poderemos trabalhar juntos, orar juntos, ir juntos à prisão, certos de que um dia seremos livres (apud BOERI, 2001, p. 54).

            Neste mesmo discurso, Luther King fala da urgência do momento e ressalta uma vez mais o método da não violência

Disponível em: VOA News. Acesso em 06/03/2018

Seria fatal para a nação desconsiderar a urgência do momento e subestimar a determinação do negro (...). Não haverá nem paz nem tranquilidade até que aos negros lhes sejam dados os seus direitos de cidadania [...] “Não podemos permitir que nosso protesto criativo degenere em violência física. A cada momento, precisamos alçar às alturas majestosas para defrontar a força física com a força da alma (...) (apud PAIVA, 2010, p. 138)

            Foi na sua luta pelos direitos civis que Luther King se viu diante da necessidade da desobediência civil, ou seja, lutar contra as injustiças significava ter que desobedecer leis injustas. A sua forma de luta é um exemplo claro de desobediência civil, todavia, uma desobediência que não faz uso da violência, mas que é pacífica, não violenta. Luther King lutou pelos direitos civis por considerar que as leis segregacionistas eram injustas e diante de uma lei injusta, acreditava ele, era necessário se pôr em luta.

            Um ano depois, aos 35 anos, foi premiado com o Nobel da Paz, o mais jovem até então a ser agraciado com o prêmio. “O telegrama que comunicava que o prêmio havia sido concedido dizia assim: ‘O Prêmio Nobel da Paz de 1964 foi concedido a Martin Luther King, por ter firme e continuamente sustentado o princípio da não-violência na luta racial no seu país e no mundo’” (BOERI, 2001, p. 52-53).

 

Referências

ALEXANDER, Jeffrey C. A tomada do palco: performances sociais de Mao Tsé-Tung a Martin Luther King, e a Black Lives Matter hoje. Sociologias, Porto Alegre, ano 19, no 44, p. 198-246, jan/abr 2017.

ANDREWS, George Reid. O negro no brasil e nos estados unidos. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, v. 2, n. 1, p. 52-56, jun. 1985. Acesso em 06/03/2018

BOERI, Hélio A. A. Desobediência Civil: um estudo da resistência como ato ao direito de cidadania. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Pós-Graduação em Direito. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2001.

BRANCH, T. Parting the Waters: America in the King Years, 1954-63. New York: Simon and Schuster, 1988.

KING JÚNIOR, Martin Luther, Jr. A Testament of Hope: The Essential Writings and Speeches of Martin Luther King, Jr. New York: HarperCollins, 1991.

____. Carta desde la Cárcel de Birmingham. In: Antología de Martin Luther King. México: D.F., pp. 3-28, 1968.

PAIVA, Angela Randolpho. Novos valores religiosos: referência para o exercício da cidadania. In: ____. Católico, protestante, cidadão: uma comparação entre Brasil e Estados Unidos [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010, p. 124-146. Acesso em 08/03/2018.

VOPARIL, Christopher J. Religión y lucha por la justicia social en el pensamiento político estadounidense: Richard Rorty, John Rawls, y Martin Luther King, Jr. Análisis político, Bogotá, n. 79, p. 93-102, sep./dic., 2013. Acesso em 08/03/2018.

Espiritualidade e Política → Martin Luther King Jr.: sonho e pesadelo na luta pelos direitos civis

Sugestão de Filme

King no Deserto (2018)

King in the Wilderness é um filme documentário da HBO que aborda os últimos anos de vida do Dr. Martin Luther King, Jr., 50 anos após seu assassinato em Memphis. O filme revela um líder em conflito que enfrentou ataques, críticas, de ambos os lados do espectro político e apesar de tudo, manteve sua crença inabalável na doutrina da não-violência como a única forma de obter êxito na luta pelos direitos civis. Desde a aprovação do Ato dos Direitos de Voto em 1965 até seu assassinato em 1968, King permaneceu comprometido com a não-violência o que gerou conflitos com o movimento Black Power que via sua não violência como fraqueza. Além disso, como consequência dessa doutrina, King teve que lidar com conflitos gerados por seus discursos anti-guerra do Vietnã, vistos como sinais de traição contra o presidente Lyndon B. Johnson. No filme várias pessoas ligadas à figura de Luther King revelam fatos dos seus últimos anos de luta como os protestos e as marchas históricas de Selma a Montgomery e fatos pessoais da vida de Luther King. O documentário apresenta imagens de arquivo, vídeo dos bastidores dos momentos privados do Dr. King, fotos de arquivo íntimas e conversas telefônicas gravadas pelo Presidente Johnson, que foi aliado e adversário na luta de King por direitos civis.

 

Veja Também:

Filmes e Documentários sobre a Questão Racial

No site https://withoutsanctuary.org/pics_01.html é possível ter acesso a inúmeras fotos com enforcamento de negros e informações sobre cada foto, com ênfase nas três primeiras décadas do século XX onde, nos E.U.A. eram comum espancamentos, linchamentos, enforcamentos e até queimarem homens e mulheres negras pelas ruas de vários estados norte-americanos, principalmente no sul daquele país, em locais públicos com a complacência do estado e acompanhado pela comunidade branca das cidades. Através deste acervo é possível perceber como a segregação racial nos Estados Unidos deixou marcas profundas para a população negra.