Um diálogo necessário entre Psicologia e Política: entre o sentimento de pertencimento e o sentimento de rejeição

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em mar. 2019

            O filósofo grego Aristóteles na sua obra Política (ARISTÓTELES, 1985) definiu o homem como um zoon politikon, ou seja, um animal político. Desde então filósofos, pensadores e cientistas sociais vem procurando entender e compreender qual a melhor forma de homens e mulheres se relacionarem e se organizarem em sociedade, através das relações de poder que constantemente se fazem presente no espaço político. Uma outra característica igualmente importante que imperava na cidade de Atenas – onde Aristóteles estudou durante 20 anos na escola de seu mestre Platão e um importante centro cultural, intelectual e filosófico da Grécia Antiga –, se revela no fato de que não se fazia distinção entre o indivíduo e o cidadão, ou melhor, não se separava o indivíduo do cidadão. É verdade que é preciso considerar que naquela época apenas 10% da população era considerada cidadã onde a maioria de escravos, mulheres e estrangeiros não era facultado a participação no espaço público. Mas a ideia de que somos ao mesmo tempo indivíduo e cidadão é algo que merece uma boa reflexão considerando a nossa sociedade atual. De fato, não temos como separar o indivíduo do cidadão. Por mais que possamos nos afastar da política e considerá-la uma atividade como algo alheio a nossa vida, as decisões que são tomadas no âmbito da esfera pública afetam diretamente o nosso dia a dia. Exercemos o nosso papel de animal político não apenas na hora de votar em nossos representantes, mas quando recebemos algum tipo de renda de programas sociais como o bolsa família ou quando lutamos pelos direitos das minorias e igualdade de gênero, por exemplo. E tudo isso se dá não apenas no âmbito do indivíduo, mas também do cidadão. Se sou uma mulher lutando por melhores condições de salário, não estou lutando apenas para melhorar a minha condição de mulher, mas a minha condição de cidadã. Se luto para que seja incluído no currículo da rede de ensino brasileiro a História e Cultura dos povos afro-brasileiros não o faço apenas por uma questão de reconhecimento coletivo, mas também de reconhecimento da minha identidade enquanto um indivíduo que vive em uma sociedade extremamente plural como o Brasil, formado por uma miscigenação de povos indígenas, negros e brancos. A partir destes poucos exemplos podemos perceber o quanto é impossível separar o indivíduo do cidadão. Não sou hoje o indivíduo e amanhã o cidadão que irá exercer seu papel através do voto. Simultaneamente coexistem em cada um de nós quem somos do ponto de vista individual, e aqui podemos falar de uma esfera psicológica, e do ponto de vista coletivo, onde surge de modo mais evidente a esfera política e social, reforçando que pretendo tratar aqui de algo que não pode ser isolado um do outro sob pena de limitar nossa visão da realidade e, nesse caso, por mais que a Psicologia e a Política sejam ciências distintas e possam ser estudadas separadamente, de algum modo elas também se relacionam, na medida em que têm por objeto de estudo aquele que é não apenas indivíduo, mas também cidadão.

            Gostaria de evocar ainda as ideias de um outro filósofo, antes de nos dirigirmos de modo mais específico ao tema proposto. Me refiro ao filósofo do iluminismo francês Jean-Jacques Rousseau. Um dos maiores pensadores da Modernidade, fervoroso defensor da democracia e da soberania popular, a obra prima em que Rousseau aprofunda suas ideias sobre política chama-se Do Contrato Social (ROUSSEAU, 1963). Célebre por sua ideia de que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe, Rousseau critica o modo pelo qual o corpo político, ou seja, a sociedade, estabeleceu suas bases a partir de um contrato social que existe apenas no interesse da propriedade privada e de seus proprietários, o que torna este contrato social ilegítimo. Sem entrar nos detalhes da teoria contratualista desenvolvida por Rousseau, a ideia que gostaria de ressaltar aqui é precisamente a de um corpo político ou social. Para Rousseau, da origem da sociedade resultou um “corpo moral e coletivo” que não é apenas um simples agregado de indivíduos, mas um corpo político. A associação de indivíduos origina uma cidade, uma República: seus associados recebem o nome de povo e cidadãos; o conjunto dos associados forma um coletivo que é o corpo político.

            Rousseau acredita que é preciso tornar os indivíduos conscientes de que os mesmos fazem parte de um todo maior, que é o corpo político (o Estado). Mas que essa não é uma tarefa fácil, porque irá exigir dos indivíduos uma certa renúncia e transformação: de uma perspectiva individual para uma outra coletiva, como parte de um todo maior, do qual o indivíduo recebe, de certo modo, sua vida e seu ser. Essa tarefa assume inclusive uma feição pedagógica: gestar no indivíduo o espírito social e, com ele, o sentimento de ser parte do corpo político, e isto desde cedo, considerando sua individualidade pelas suas relações com o corpo do Estado e perceber sua existência como parte deste corpo.  O indivíduo é uma “unidade fracionária” cujo valor só pode ser avaliado na relação com o todo, ou seja, com o corpo social ou corpo político. Cada indivíduo se torna uma “unidade de um todo” e “seus interesses particulares estarão submetidos aos interesses de todos, representados pela vontade geral e, em contrapartida, todos terão direitos iguais dentro dessa coletividade, que é a sociedade civil” (SILVA, 2008, p. 41).

            Estas ponderações eram necessárias para que pudéssemos compreender que não somos apenas seres individuais, mas que também fazemos parte de um grupo, de uma comunidade, de um coletivo, e por isso pensar coletivamente se faz necessário, o que implica, por conseguinte, pensar na Política. Mas pensar na Política nos dias atuais não é uma tarefa fácil pois um fato comum que parece saltar aos olhos é como as pessoas hoje em dia não gostam de política e, o que é pior, sentem aversão e rejeição pela política. Acredito que não há uma única explicação para que muitos de nós possamos sentir algum tipo de rejeição em relação à política, mas penso poder ressaltar algumas de suas razões sem, naturalmente, esgotá-las.

            Na realidade não precisa ser nenhum especialista no assunto para perceber o quanto esse sentimento de rejeição está, de alguma forma, ligado ao modo como a política vem sendo conduzida nos últimos anos. Escândalos de corrupção que tomam conta diariamente dos telejornais e noticiários. E na época das novas tecnologias de informação e comunicação como a internet, as redes sociais também estão repletas de notícias envolvendo políticos corruptos. Somos “bombardeados” todos os dias por escândalos de corrupção: passiva, ativa, lavagem de dinheiro, no poder executivo, no poder legislativo e o poder judiciário, que deveria servir de guardião da nossa Constituição, também está envolvido em diferentes esquemas de corrupção e recebimento de propina com o nosso dinheiro, o dinheiro público. Como ficar indiferente a tudo isso? Como não experimentar um sentimento de aversão por aqueles que se dizem nossos representantes na esfera pública?

            E os partidos políticos também têm sua parcela de culpa neste processo, pois a imagem que os partidos políticos passam para seus eleitores é a de que eles não querem transformar o poder, mas tomá-lo. E quando chegam ao poder as distinções ideológicas se dissipam e desaparecem. Todos os partidos, de esquerda ou de direita, quando chegam ao poder, defendem uma única ideologia: a manutenção do poder. O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos nos oferece importantes reflexões para pensar o papel dos partidos políticos, ao afirmar que os partidos políticos sempre descumprem suas promessas de campanhas quando chegam ao poder: “Um dos estudos mais interessantes é observar os programas dos partidos e depois sua prática política. Sempre foi assim, mas agora é ainda mais, porque há uma pressão da globalização neoliberal que não pode entrar na agenda política de um partido. Nenhum deles pode dizer ‘quando chegar ao poder vou seguir totalmente as instruções do Banco Mundial e do FMI’, porque se disser isso não vai ter votos, já que as pessoas sabem as consequências disso. Tem de dizer que vai dar mais emprego, educação, saúde etc., mas quando chega ao poder não faz nada disso. Esse descumprimento faz com que a deslegitimação dos partidos seja cada vez maior em um número cada vez maior de países” (SANTOS, 2007, p. 97). É dessa forma que a Política e os partidos políticos vão “naturalizando” a distância entre os cidadãos e o espaço público e alimentando esse sentimento de rejeição quando, na verdade, deveriam estimular o sentimento de pertencimento ao corpo político.

            O ponto para o qual eu gostaria de chamar a atenção agora é que, embora seja compreensível essa rejeição popular em relação à política (basta lembrar o índice de rejeição política dos dois últimos presidentes: Dilma Rousseff e Michel Temer), não podemos nos ausentar do espaço público, pois como dizia o filósofo grego Platão, autor da obra A República (PLATÃO, 1993), o preço que pagamos por nos afastarmos da política é sermos governados por pessoas sem escrúpulos que não agem senão no interesse particular.

            É por isso que iniciamos este artigo ressaltando as ideias de Aristóteles e Rousseau. Precisamos entender que somos “animais políticos”, ou seja, a nossa existência só tem sentido dentro de uma comunidade política e de uma organização social, a não ser que eu resolva virar um eremita, abandonar a sociedade e viver isolado no deserto. Mas não basta saber que fazemos parte de uma comunidade política, precisamos sentir que fazemos parte dela, que somos partes de um corpo político, e que a harmonia desse corpo social depende do bom funcionamento de seus órgãos e células, para utilizar uma metáfora inspirado nas ideias do sociólogo Émile Durkheim (2005). De acordo com o pensamento deste eminente sociólogo, a sociedade é um imenso corpo social (o conjunto das instituições sociais formam este corpo), possuindo vários órgãos (entre eles: a família, o Estado, a escola, a Igreja), cada qual com suas funções específicas. Durkheim leva essa analogia ainda mais além quando afirma que a partir do momento em que um desses órgãos deixa de funcionar convenientemente, todo corpo social se ressente e adoece.

            Finalmente, diante de todas estas considerações, é possível agora ressaltar que, como seres individuais e coletivos que somos, precisamos nos sentir fazendo parte deste organismo ou corpo político: é o que chamo de sentimento de pertencimento político. Sentir que o individual e o social estão integrados na vida coletiva. Não se sentir fazendo parte deste corpo político só amplia a ideia de rejeição cujas raízes não são apenas exteriores (o modo como a política é conduzida pelos partidos políticos e seus partidários) mas também interiores, a partir do modo como eu me relaciono com o corpo social e nesse sentido acredito que não se pode pensar a Política de forma isolada dos aspectos psíquicos da natureza humana. De alguma forma o nosso biótipo psicológico interfere na dinâmica social. Não é possível falar de sentimento de pertencimento ao corpo político e social sem mergulhar na natureza psicológica do ser humano. Mesmo no campo político é preciso ir até as profundezas da alma humana, cuja mentalidade psíquica determina um modo de ação social que pode ser individualista e egocêntrica (centrada no ego, no “eu”) ou colaboracionista e orgânica (centrada no outro, no “nós”).

            O homem egocêntrico, de psicologia individualista, age em função de suas necessidades imediatas e a satisfação de suas necessidades são os problemas mais elementares e urgentes que ele se impõe, para a continuação de sua própria existência. Para um individualista egocêntrico agir em colaboração com os outros é sinal de fraqueza. Esse biótipo psicológico não se culpa se tiver que aproveitar-se da situação no interesse próprio. Para aquele que se mantém em uma perspectiva individualista e não considera o coletivo sempre haverá a possibilidade de agir no interesse pessoal e aproveitar-se das situações para tirar algum benefício para si. O que explicaria, em parte, os atuais escândalos de corrupção.

            Por outro lado, quanto mais o indivíduo amadurece psicologicamente e supera o seu egocentrismo, ele compreende que não existe sozinho, mas faz parte de um coletivo em torno do qual o princípio egocêntrico só pode levar ao aniquilamento do corpo social e por isso requer uma nova mentalidade, de tipo colaboracionista.

            Enquanto o homem não for capaz de superar seu egocentrismo e individualismo, será inútil cogitar mudanças profundas no sistema político. Isso porque o biótipo humano de tipo egocêntrico e individualista é desagregador do complexo social. O seu oposto é o colaboracionismo. Parafraseando o pensador italiano Pietro Ubaldi (1997), a hipertrofia do egoísmo constitui um mal que onera a realidade social e a ameaça. É necessário superar a psicologia de tipo individualista elevando-a até uma consciência de tipo colaboracionista. Aquele que abandonou a perspectiva individualista e adotou o colaboracionismo não o faz por mera convenção. O seu modo de agir se baseia em uma espécie de empatia, alteridade e altruísmo que o faz abandonar a perspectiva egocêntrica porque dotado da capacidade psicológica de se colocar no lugar do outro, procurando experimentar o que sente o outro. A empatia está intimamente ligada a perspectiva da alteridade, ou seja, do ego (o “eu”) e o alter ego (o “outro eu”) e igualmente ligada ao altruísmo, entendido aqui como capacidade de ajudar o outro porque consegue se colocar no seu lugar. Embora a empatia esteja ligada a uma perspectiva bem específica, que é a capacidade de se colocar no lugar do outro, acredito que esta identificação com o outro seja um primeiro passo e talvez o mais significativo, em direção ao sentimento de pertencimento ao corpo político. Para me colocar no lugar do outro preciso abandonar a psicologia egocêntrica de tipo individualista e adotar uma perspectiva que leva em consideração não o eu, isolado, mas o nós: o Eu e o Tu para usar uma expressão que dá título ao livro do filósofo austríaco Martin Buber (2001), a partir do qual se pensa o homem como um ser relacional e serve de esteio da vida em sociedade.

            Eis algumas breves e rápidas considerações sobre o sentimento de pertencimento e rejeição em relação à política. O segundo é compreensível e o primeiro necessário. É preciso refletirmos sobre o fato de que nós somos os maiores prejudicados quando fazemos a opção de nos afastarmos da esfera política motivados por essa rejeição ao mesmo tempo em que vivemos em sociedade e precisamos começar a pensar como tal. Nesse sentido a Política não pode ser pensada sem levar em consideração os aspectos psicológicos do ser humano: sua natureza psíquica, sua personalidade, alterando a nossa mentalidade e consequentemente a nossa forma de interação social de um modo de ser individualista e egocêntrico para um modo de ser colaboracionista e orgânico, porque somos partes do corpo político.

 

Referências

ARISTÓTELES. Política. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985.

BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução de Newton Aquiles Von Zuben. São Paulo: Centauro, 2001.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2005.

PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. [1762]. Du Contrat Social: ou Principes du droit politique. Paris: Union Générale d’Éditions, 1963.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo, 2007.

SILVA, Fabiele Aparecida Trujillo da. Rousseau e a educação do adolescente para a cidadania – contrapontos com a atualidade. Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação. Universidade de São Paulo, 2008.

UBALDI, Pietro. A Grande Síntese – síntese e solução dos problemas da ciência e do espírito. 18. ed. Rio de Janeiro: Fundação Pietro Ubaldi, 1997. (Obras completas de Pietro Ubaldi, v. 2).

 

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